Flutue

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Naquela manhã pacata, céu cinza e sem cantos de pássaros, onde nem mesmo se se ocorresse o arrebatamento seria possível desmanchar o tédio intermitente. Parece que toda a história de adrenalina e aventura começa assim, então talvez eu deva me entusiasmar para o dia. Aliás, não, eu não tenho filhos ou esposa, sem mãe ou qualquer familiar vivo. Mas não digo isso para sentir pena, até porque quem sente pena leva para a casa, e acho que você não vai querer isso. Sério, eu fico me perguntando se algum dia meus sonhos de infância vão de fato se realizar. 

Lembro do meu sonho de ser policial. Meu avô havia morrido exercendo sua profissão de detetive, claro que isso me marcou. Sua bravura era admitida por todos do departamento, e ele foi múltiplas vezes condecorado por isso. Passei em alguns concursos, mas após descobrir que teria de preencher papéis atrás de papéis eu caí fora. Nos bombeiros a mesma coisa. Na prefeitura, no hospital, e até no posto de gasolina. Nesse último caso foi a repetição o que me cansou. Eu acreditava que em um posto pudesse acontecer algum assalto ou atentado, isso seria de fato empolgante, eu poderia ser o herói disso tudo quem sabe. Porém, todos esses sonhos tinham uma coisa em comum, falta de aventura. Pelo menos em tempo integral. Pode o leitor me considerar maluco, mas eu queria aventura em tempo integral. Queria acordar com patins nos pés e fazer meu café enquanto desarmava uma bomba. 

De todo modo, chegou um tempo que passei a ser pressionado. Um adolescente em casa incomoda mais do que mil agulhas nos seus pés. Por conta disso meus pais me mandaram logo para um colégio militar. Para ser sincero foi uma ótima experiência, passei a maior parte de minha juventude nele. Tanto que não demorei a comandar tudo ali dentro. Eu tinha garotas, fama, e aventuras. Era um sonho de adolescência. Mas não durou o tanto que eu queria, eu tinha muitos planos lá dentro mas após a morte de minha mãe meu mundo caiu. Todos os meus sonhos já não mais eram possíveis, pelo menos não tão fáceis de se alcançar como antes seria ou parecia ser.

Foram anos para que eu pudesse amadurecer, e com isso tive que me render ao sistema e permanecer pobre, no lodo. Segui assim até encontrar um velho, um desconhecido distante, mas que traria a mim dois presentes, um extremamente bom, e outro muito ruim. Era o tio de um tio distante, um dos bons. Milionário e sem família, e como todo bom ricaço não queria deixar sua fortuna para o governo. Mandou que achassem, nem que tivessem que ir ao inferno, alguém para quem ele pudesse dar esse dinheiro. Esse inferno era minha vida. E me deram a bolada sem mais nem menos. Era estranho tudo aquilo, mas pude aproveitar sem problemas. Um tempo suficiente para torrar um terço do dinheiro, até que me veio a notícia ruim. Esse dinheiro passado às pressas só foi feito graças a um câncer, esse mesmo câncer que foi por genética passado a mim. 
No dia que descobri que morreria peguei o meu carro de última geração e dirigi bêbado por bairros nobres da cidade. O inevitável aconteceu, mas de uma forma estranha. Fui em direção a um poste em alta velocidade, tentei apertar e puxar os freios mas nada funcionava, e antes de bater só pude escutar o som do alarme de uma bomba. Foram três vezes repetidos o som, até que eu me transformasse finalmente em pedaços de carne espalhado pela rua. E assim, um de meus sonhos se realizou, o de voar pelos ares.

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