Aquela noite estava quente, o que é comum no hemisfério sul nos meados de dezembro. Uma jovem estava sentada em frente ao computador, pensando sobre o que fazer. Ultimamente se atinha a pesquisar novas músicas e filmes para seu repertório já extenso, pois dedicar-se à leitura, seu passatempo favorito desde a infância, estava fora de questão. Sua mente simplesmente não desligava, até para dormir tinha dificuldade, e a cabeça sempre cheia de coisas tornava impossível se concentrar nos livros. Mas naquela noite o que ela estava realmente pensando não era bem o que fazer no computador, e sim com a própria vida.
Aos vinte e tantos anos de idade, sentia que ainda era a mesma garotinha da infância, desde cedo absorta nas incertezas da vida, e a essas alturas nada havia mudado; a diferença é que agora a jovem vivia submersa na mágoa dos fracassos acumulados ao longo dos anos. Essa mágoa constante a levou a uma depressão profunda, que por não ter sido tratada adequadamente, fez eclodir desequilíbrios em todo seu corpo e comportamento, o que apenas piorava sua condição mental já precária. A jovem vinha adoecendo exponencialmente, desmotivada para fazer qualquer coisa enquanto via o tempo escorrer pelos seus dedos, até perceber que os pensamentos obscuros de épocas bem sombrias do passado começaram a brotar novamente, pensamentos que ela acreditava já ter superado. Eles ressurgiram com tanta intensidade que o peso de toda aquela escuridão a derrubou com tudo, mantendo-a inerte no chão, sem forças para reagir. Dessa vez, ela estava decidida a tirar a própria vida, e nada nem ninguém a faria mudar de ideia.
Embalada pela melancolia de Nutshell, uma canção de Alice in Chains, que era uma de suas bandas preferidas, a jovem escreveu três cartas de despedida; a primeira para sua família, a segunda para o namorado e a última para sua melhor amiga, a quem não via há muitos anos, já que morava longe da cidade onde se conheceram. Concluídas as cartas, ela guardou no meio de um caderno na estante de livros da sala, deixando pistas pela casa para que o namorado as encontrasse no momento oportuno. Finalmente estava acontecendo – a jovem estava decidida a ir em frente em seu objetivo, dessa vez partindo para ações concretas em vez de apenas idealizar seu próprio fim, como antigamente.
Apesar de estar rodeada de pessoas, a jovem se sentia há tempos profundamente sozinha, alheia a tudo o que fugia do escopo da sua dor, dominada pela culpa esmagadora de não conseguir ser feliz, mesmo tendo tudo a seu favor. No longo tempo em que lutou contra a depressão, não conseguiu encontrar um propósito sequer que a ajudasse a seguir em frente, nem mesmo a companhia dos seus entes queridos era suficiente para lhe ajudar a segurar a barra que era viver. Os sonhos de outrora, planos empolgantes para o futuro e as atividades que lhe faziam bem haviam perdido totalmente o apelo naqueles dias apáticos e cinzentos, em que ela questionava se algum dia existiu de fato um propósito para a sua existência, como afirmaram os crentes e místicos que conhecera durante a vida. Talvez sua dor fosse tão evidente que fazia com que eles lhe dirigissem palavras de conforto, na tentativa de atender a um pedido de ajuda silencioso. Assim, a jovem tornou-se apenas uma figurante da própria história, figurante que decidiu sair de cena cedo demais.“Mate o tempo antes que o tempo te mate”. A frase de um filme tão melancólico quanto sua personalidade jamais havia abandonado sua lembrança. Foi assim que ela escolheu viver até ali, na esperança de encontrar sentido em algum lugar do caminho. Esse filme era triste, mas ao menos teve um final feliz. Não, não diria feliz, pois apesar do desfecho favorável, ela sabia que as cicatrizes dos traumas vividos pela protagonista, assim como as dela, estariam marcadas pra sempre em seu corpo e em sua alma. Os filmes costumam congelar a vida dos personagens no final, mas a jovem tinha o hábito de dar sequência à história de cada filme em sua imaginação.
A arte imita a vida; certos traumas, assim como as perdas, são irreparáveis. A vida dessa jovem era marcada pela dor desde que percebeu a brutalidade do ser humano ao ter sua inocência roubada na infância e quando viu pela primeira vez a partida sem aviso prévio de alguém que lhe era próximo e querido. Os mais idosos que, pelas doenças da idade avançada e internações constantes no hospital, davam os tristes sinais da finitude da vida e todos no entorno já sabiam o que esperar. Mas como uma criança pode entender a morte? Mesmo naquela noite quente de dezembro a jovem ainda não conseguia entender. Nunca soube lidar com perdas, nem investindo toda sua força de vontade; tudo o que pôde fazer foi conviver com a dor da saudade que jamais amenizou. E as partidas, que fazem parte do ciclo da vida, obviamente continuaram com o passar do tempo, algumas repentinas e difíceis demais para aceitar, destruindo por completo seu coração já em pedaços. A partir daí, todas as medidas paliativas para amenizar a dor deixaram de funcionar, fossem remédios ou as longas sessões de terapia. Como pode a falta de algumas pessoas deixar um vazio tão grande por dentro? Mesmo buscando manter apenas as boas memórias, a jovem não conseguiu preencher aquele vazio, pois ninguém é substituível, principalmente quem significava o mundo para ela.
Algumas distrações, entretanto, tiraram foco da dor por alguns períodos de tempo. A jovem se refugiou nos estudos, que acabava abandonando em seguida, por uma razão ou outra; tentou conhecer pessoas novas, que no início pareciam ser os melhores seres humanos do mundo, apenas para deixarem cair suas máscaras e mostrarem sua verdadeira face assim que a jovem baixava a guarda. Tais pessoas lhe tiraram proveito nos momentos de maior fragilidade, atraídas por sua ingenuidade e carência de afeto, com o único intuito de divertirem-se às custas de sua dor, numa demonstração de sadismo escancarado quase inacreditável. Ninguém a socorreu nesses momentos, nem sequer quem presenciou em silêncio todo o tormento que lhe foi imposto. Então, incapaz de defender a si mesma, ela se distanciou definitivamente de todos, trancafiando-se na segurança de sua casa e mantendo por perto apenas as poucas pessoas em quem podia realmente confiar.
O curioso é que, apesar de todo esse sofrimento que foi acumulando ao longo dos anos, e como é comum entre pessoas deprimidas, a jovem não queria realmente morrer. As cartas de despedida e os planos para partir desse mundo eram apenas uma medida de contenção da dor, embora equivocada, já que não encontrou saída em lugar nenhum. Acreditava que suas opções estavam esgotadas e não valia mais a pena continuar, afinal, matar o tempo escondida em seu próprio universo mental não lhe trazia mais satisfação; os devaneios em que costumava se refugiar perderam seu brilho por completo, e nem os amigos imaginários que criava conseguiram lhe tirar a angústia da solidão interior. Era tudo dor, apenas dor.Nessas alturas, jovem foi se isolando cada dia mais, agora não apenas dos potencialmente perigosos desconhecidos, mas também dos que mais amava. Perdera a vontade de conversar, pois ultimamente suas palavras soavam como navalhas afiadas ferindo os ouvidos mais sensíveis, ainda que não fosse sua intenção. Ela só não conseguia evitar. Em sua mentalidade distorcida, acreditava que ninguém queria realmente ouvir o que alguém no fundo do poço como ela tinha a dizer, pois nesse lugar só existe escuridão e uma terrível escassez de esperança que afasta qualquer um, não importando o tamanho do esforço investido em ajudar.
Mas a jovem descansou na noção de que, antes de escolher a solidão total por companhia até o fim de seus dias, já havia buscado uma saída de todas as formas imagináveis, saudáveis ou não. Estudou variadas filosofias de vida, experimentou todos tipos de espiritualidade que conheceu, frequentou por muito tempo as consultas com sua psicóloga e passou por diversos tratamentos psiquiátricos com diagnósticos e medicações diferentes; devorou todos os livros que lhe despertaram interesse e desperdiçou horas e mais horas na internet, consumindo tudo o que a levasse o mais distante possível da angústia de sua existência. Mas nunca houve realmente para onde fugir. Essas foram apenas válvulas de escape momentâneas, algumas perigosamente enganosas, que só cultivaram seus pensamentos sombrios sem que ela ao menos se desse conta. A jovem foi incapaz de reverter o estado de definhamento interno em que se encontrava, batalhando sozinha contra seus inúmeros demônios internos, que pareciam cada vez mais poderosos à medida que sua doença mental progredia. Esse tipo de batalha não se luta sem aliados, mas já que não conseguia contar com ninguém, a única solução que enxergou na densa escuridão da depressão que a engoliu foi despir-se, finalmente, da vontade de viver, mesmo ciente do desespero e da profunda dor que causaria nas pessoas que mais se importavam com ela. Nesse estágio da depressão, é praticamente impossível qualquer nível de empatia pelos sentimentos alheios; a dor toma conta de todo o ser de uma forma que impede qualquer tentativa de racionalização, porque tudo o que mais importa nessa hora é o cessar absoluto da dor, independente das consequências.
Era chegada a hora, então. A jovem decidiu passar seus últimos dias numa breve temporada em sua cidade natal, para dar o último adeus aos entes queridos, que em momento algum desconfiaram. Ela fingiu muito bem que não havia nada com que se preocupassem, enquanto deu tudo de si para abafar o sentimento de culpa pelo que estava prestes a fazer. E foi feliz por alguns instantes - testemunhou os primeiros passos do sobrinho mais novo; celebrou a formatura da melhor amiga na faculdade; foi madrinha de casamento da irmã e até pegou no ar o buquê de flores que voou inesperadamente em sua direção. Seria esse um bom sinal do destino? Não... ela não acreditava mais em destino, especialmente os bons. A jovem celebrou também alguns aniversários, e agradeceu pela vida de seus amados e por tudo o que haviam passado juntos até ali. Foi eterno enquanto pôde durar.
Cada um desses e tantos outros momentos lhe ofereceu a oportunidade de dar uma nova chance a si mesma, ao menos para continuar matando o tempo enquanto ele não lhe matasse. Mas incapaz de perceber todos motivos que tinha para viver à sua volta, a jovem se manteve resoluta de sua decisão final, por isso aproveitou ao máximo os momentos felizes com as pessoas a quem tanto amava como se não houvesse amanhã.
E o amanhã, de fato, não chegou para a ela. Durante seus vinte e poucos anos de vida a jovem matou o tempo, mas não deixou ele lhe matar. Numa fria e chuvosa tarde de outono, ela mesma fez isso por ele.
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Mate o tempo antes que o tempo te mate
General FictionEsta é uma curta história sobre uma história curta, que trata da depressão profunda da personagem principal e suas consequências, tanto para a protagonista, quanto para as pessoas em seu entorno. A obra a seguir é apenas ficção, e a semelhança com q...