22. Calendário, Anavitória

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Rafa Kalimann

2021

(...)

Minha visão estava embaçada, tudo que enxergava era sombras e vultos, estava sentada em uma poltrona confortável, com as pernas cruzadas em índio e as mãos movimentando-se criando palmas. Minha risada se misturava com a de outra pessoa, um garotinho, ele estava sentado em uma cama à minha frente, não tinha cabelo e mesmo que me esforçasse para enxergar seu rosto, tudo que conseguia ver era seu sorriso.

Ao lado dele estava uma mulher. Ela não ria, mas sua alegria era perceptível pelo som de sua voz suave, cantando alegremente uma canção desconhecida por mim, no seu colo estava o violão branco que ficava em meu escritório e aparentemente não tinha dono.

Não conseguia indentificar onde estava, mas algo me trazia bastante familariedade ali. Talvez pelos dois sentados na cama exalando alegria, ou talvez pela maneira que meu coração se enchia de amor ao enxerga-los tão felizes. 

Até que tudo começou a se desmanchar lentamente, os vultos foram sumindo dando lugar a uma paisagem escura, me fazendo levantar do lugar onde estava e em um último ato de desespero tentar chegar até a cama. Porém a escuridão me domou e tudo que restava deles eram o som das risadas e do violão tocando ao fundo.

(...)

Acordei no susto, completamente atordoada, sentindo o coração bater na garganta. Minhas mãos tremiam como se tivesse acabado de sair do meio de uma nevasca, em contraponto, meu corpo estava banhado em suor, me sentia quente e fria ao mesmo tempo, com o estômago embrulhado e os pensamentos completamente desordenados.

Sentei na cama me sentindo ainda mais trêmula, puxei as pernas contra o peito e as abracei, deixei a testa descansar contra os joelhos e fechei os olhos, respirando fundo, tentando colocar em prática todas as táticas que Babu havia me ensinado para momentos assim. Não sei se estava tendo um ataque de pânico, mas sei que aquele sonho conseguiu me tirar completamente do eixo, principalmente a maneira que ele se assemelhava à uma lembrança.

Tal pensamento só serviu para me deixar ainda mais nervosa, levei uma mão até o peito sentindo meu coração bater completamente fora do ritmo normal, estava nauseada e tonta, precisava urgentemente de calma antes que tivesse uma parada cardíaca. 

Passei bons minutos completamente estática, focando na respiração e tentando ignorar o sonho bizarro que acabei de ter. Quando me sentir um pouco mais calma, finalmente levante o rosto e olhei ao redor do quarto, notando a luz fraca do sol entrando pela janela denunciando que ambiente deveria estar mergulhado na escuridão minutos antes.

Levantei da cama ainda trêmula, minhas pernas estavam bambas e tive que me forçar à chegar no banheiro sem correr o risco de cair de cara no chão. Não me dei ao trabalho de tirar o pijama que vestia, entrei no box e liguei o chuveiro, deixando a água gelada fazer o duro trabalho de me trazer de volta para a realidade. Preferia o tremor do frio do que o do nervosismo, banhos gelados sempre tiveram um efeito calmante surreal sobre mim, e nesse momento, provavelmente seria a única coisa capaz de me acalmar de verdade.

As imagens borradas do sonho não me deixaram em paz um segundo sequer, o silêncio do quarto parecia me engolir, sufocando-me, decidir que estava na hora de sair de lá, mesmo que ainda estivesse cedo e a chance de encontrar meu pai zanzando pelos corredores fossem grandes. Evita-lo estava se tornando uma tarefa frequente, não sabia muito bem o porquê daquele receio estranho de o encontrar, mas não conseguia evitar o sentimento de fuga que andava me tomando sempre que alguém ao menos citava seu nome.

Talvez fosse pela cena que ele presenciou no estacionamento do hospital, a ideia de Sebastião saber sobre meu envolvimento com Manu me incomodava, mesmo estando ciente de que não há nada no mundo que ele deseje mais do que me ver interessada romanticamente em alguém. 

Second Chance [Ranu]Onde histórias criam vida. Descubra agora