Capítulo 21

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   Ela andava de um lado para o outro, a fim de aliviar a tensão que a circundava. Sabia que estava entrando em um jogo perigoso, como malabarismo com facas afiadas.
  
   No fundo, sempre soubera que um dia Marion descobriria a verdade sobre suas origens, mas não imaginava que seria daquela forma; ter seu passado jogado em sua cara. Aquilo doera tanto, que tem a pizza que tinham pedido parecia mais apetitosa. "Se o odeia tanto quanto eu, ajude-me", foi o que Marion havia dito para ela. E aquilo ficou ecoando em sua mente nos últimos dias.

    Seu pai, de fato, nunca fora um bom homem. Sarah ainda podia se lembrar dos gritos de súplicas da mãe, toda vez que o pai perdia a cabeça e batia nela. A menina, que na época mal tinha seis anos, se escondia embaixo da cama, da mesa, ou dentro dos armários para escapar dos gritos e se punha a chorar. Pedia, silenciosamente, que aquela tortura parasse. Às vezes, o homem também batia em Sarah e no irmão. Foi em um desses ataques que a menina quebrara o braço.
  
   Mas naquele dia... Naquele dia Henrique estava possesso demais. Sarah escutava os gritos da mãe, mesmo estando escondida no guarda-roupas. Seu irmão deveria estar escondido em algum canto também. E então, do mesmo jeito que os gritos começaram, eles pararam. Silêncio absoluto e depois um bater de portas violento. Sarah correu para a cozinha, de onde tinha saído correndo.

   — Mamãe... Mamãe! O papai já foi, mamãe. Por favor, levanta. — Implorava aquela criança com o braço ingressado. — Mamãe?!

  Mesmo depois de minutos, nem Sarah e nem o irmão conseguiram fazer com que a mãe respondesse. A menina, então, correu até o telefone para ligar pedindo por ajuda, quando a mão de seu irmão a impediu.

   — O que você está fazendo? — ela perguntou.

   — Se você ligar, virão atrás do papai.

   — Se eu não ligar, a mamãe vai morrer. Você não pode ficar do lado do papai!

   — Não ligue, Sarinha. Daqui a pouco ela melhora.

   Raiva brilhou nos olhos da pequena Sarah e ela soube, naquele momento, que odiaria o irmão, tanto quanto odiava o pai. A menina bateu com o gesso na cabeça do menino, que cambaleou para trás, livrando o telefone de sua mão. Infelizmente, seus esforços não foram suficientes para ajudar a mãe. Henrique havia matado sua mãe e seu irmão havia ajudado também. Por culpa deles, a menina cresceu sem a mãe.

  Sarah balançou a cabeça para se afugentar das lembranças, quando sua companhia chegou.

   — Podia ao menos ter avisado que se atrasaria — reclamou.

   — Acabei de sair de uma reunião e vim. Não tive como avisar.

   — Tanto faz. Apenas vamos direto ao que interessa — Sarah disse, sem fazer questão alguma de parecer gentil. — O que quer de mim afinal, Davies?

   — Foi você quem me chamou até aqui. Não seria eu quem deveria perguntar isso?

— Justo — Sarah indicou a poltrona. — Sente-se.

   — Outro dia, você invadiu minha casa e me pediu ajuda. Disse que se eu odiasse aquele verme tanto quanto você, era para eu te ajudar. Bem, estou aqui oferencendo-lhe minha ajuda.

  Os instintos de Sarah gritavam: "perigo!". Um terreno perigoso em que ela estaria prestes a atravessar. Uma policial federal, prestes a se aliar a uma criminosa. Sentiu familiaridade com a história de Brian O'conner e Dominic Toretto.

    — Decidiu me ajudar?

   — Vai fazer valer a pena?

   — Por cada vez que fui obrigada senti-lo me machucar.

   — Está mesmo disposta a adicionar mais dois nomes na sua lista?

   — Quantos você quiser.

   — Então desde que deixe Andy e nosso relacionamento em paz, diga-me o que posso fazer.

   Marion esboçou um sorriso e começou a contar, por alto, parte de seus planos. A empresária não seria idiota o suficiente de pôr todas as cartas à mesa, até que soubesse que poderia confiar totalmente em sua vizinha.

   — E quanto ao seu irmão? — Perguntou Marion, em determinado ponto da conversa.

   — O que quer saber?

   — No natal, você me disse que tentou passar a noite com ele e seu pai. Vocês dois também não se dão bem?

   — Sabe, Davies... — Sarah exalou um suspiro, como se aquele assunto mexesse bastante com ela. — No dia em que minha mãe morreu, meu irmão me impediu de chamar ajuda, por medo do que poderia acontecer ao nosso pai. Na época, eu tinha apenas seis anos e ele oito. Desde aquele dia, percebi que ele não poderia ser muito diferente de Henrique. O natal que tentei passar com eles foi um fiasco. Felizmente, a cópia de meu pai não ficou por muito tempo. Nem eu.

   — Sinto muito pela família que tem.

   — Sim, eu também. E sinto muito pelo que Henrique fez a você. Na época em que ele foi preso, eu até fiquei sabendo, mas estava feliz demais para me importar com o motivo. De toda forma, só fui mesmo entender anos mais tarde.

   Marion se calou por longos segundos, mas deu um sorriso de compreensão para a mulher em sua frente. Sarah ofereceu um pouco de sua dor, sua mágoa. Era justo que Marion fizesse o mesmo.

    — Sempre durante o ato, ele falava, ou fazia-me dizer que eu era sua "bonequinha de luxo". Que se eu contasse aos meus pais, eles me odiariam. Então durante dois anos ele me obrigou a... — Era difícil dizer aquilo em voz alta, encontrar as palavras certas. — Passei dois anos sendo abusada sexualmente e psicologicamente por ele — Marion suspirou profundamente. — Houve uma festa de final de ano e ele passou lá em casa conosco. No dia primeiro, antes dele ir embora, eu estava em meu quarto, quando a porta abriu e ele entrou. Eu era uma menina de quinze anos.

   Os olhos de Marion estavam brilhando diante da lembrança, embora estivessem distantes. Sarah se mantinha tão imóvel, que era difícil saber se ainda estava respirando.

   — Meus pais estavam em casa naquele dia, mas nem isso o impediu. Enquanto ele me beijava e tirava minha roupa, dizia-me para não gritar ou chorar, para não chamar a atenção. E foi o que eu fiz, mas... Aquele dia ele disposto a me machucar. Eu chorava em silêncio, a cabeça enfiada no travesseiro enquanto pedia para ele parar. Mais tarde, naquele dia, minha mãe entrou em meu quarto e vou-me chorando abraçada às minhas pernas. Foi quando eu não aguentei e contei tudo para ela. Achei que ela iria gritar, me xingar, mas a dor em meus olhos e o sangue no lençol foi o suficiente para que ela se deitasse ao meu lado e me abraçasse. Ela contou ao meu pai e eu me lembro... Lembro-me de como ele se sentiu culpado por não ter reparado o que acontecia embaixo de seu teto. O quanto se culpou por confiar em Henrique. No dia seguintes, fomos até uma delegacia e, poucos dias depois, Henrique estava preso.

   Sarah lutou contra a vontade de vomitar, devido ao nojo do próprio pai. Escutar o relato de Marion... Ela certamente tinha motivos de sobra para querer matá-lo ela mesma. A jovem conteve a vontade me perguntar sobre os demais crimes da assassina e olhou-lhe nos olhos.

   — O que posso fazer para te ajudar?

   — Suspeito que Henrique esteja ao meu encalço, mas quero me antecipar. Não posso deixa-lo chegar a mim, antes que eu chegue nele primeiro.

   — Então?

   — Quero que, coincidentemente, você nos coloque no mesmo lugar.

   — Coincidentemente?! — Sarah sorriu  mirabolante. — Davies, nós temos um acordo!

Assassina de Luxo [Concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora