Um dos efeitos mais comuns dos traumas, é trancafiar memórias, ou fazer com que se tornem ralas e intangíveis. Mas algumas coisas não somem, e talvez não sumiriam nem que ele vivesse mil anos, porque foram gravadas numa peça ainda pura demais. Um papel novo e completamente em branco pode ser facilmente manchado, diferente de um que esteja sujo, amassado e gasto. Simples assim.
"Mova o copo."
Foi a ordem dada, num daqueles dias. Aquela criança pôde apenas encarar aquele médico, suas roupas, seu rosto, e então ler o nome bordado em seu jaleco, com alguma dificuldade, porque ainda não tinha aprendido bem sobre letras cursivas.
Então ele ergueu a mão, para mover o copo como lhe foi pedido.
Palmatória.
Michel nunca tinha apanhado em toda sua vida, então mesmo que tivesse doído, o choque de ser agredido foi muito maior que a dor que sentiu na mão.
Ele encarou a pele branca com as cores das veias naturalmente aparentes em certos pontos ganhar uma cor vermelha e agressiva de imediato. O mais perto que tinha chegado disso foi quando estava brincando fora de casa, e caiu uma ou duas vezes.
Ele olhou para o lado, vendo quem tinha sido. Uma mulher de cabelos loiros e presos num coque apertado, olhos claros que não transpareciam nada. Não conhecia aquela pessoa, mas conseguia ler seu nome no crachá que usava. Era ela quem tinha lhe acertado agora a pouco.
"Não precisa bater no menino, eu que não especifiquei minhas palavras." Doutor Arabel disse, se aproximando do mais novo, e se escorando na mesa de braços cruzados.
"Agora, Michel... Por que não tenta mover o copo, sem usar as mãos? É isso que eu queria te pedir." Ele murmurou, colocando a peça de plástico de volta no lugar, calmamente.
O menino ergueu o olhar para ele dessa vez, porque já tinha o visto antes, diferente dela. Já que não podia usar as mãos, ele a recolheu, mantendo junto ao corpo, para fazer aquela ardência passar, afinal se chorasse sua mãe não viria lhe buscar logo, como lhe foi dito antes.
"Por que?" Resolveu perguntar. Lembrar da sua mãe lhe fez lembrar também que ela sempre dizia que caso não entendesse alguma coisa, qualquer coisa no mundo, bastava perguntar, porque o mundo era cheio de professores, não funcionava sem eles.
"Porque eu e você somos uma equipe agora, não somos? Então tente mover o copo, sem usar as mãos." O homem respondeu. Mas Michel ainda não entendia como o que ele disse explicava alguma coisa.
"Mas por que?"
A régua de palmatória acertou a mesa, o fazendo pular no lugar com o susto, e seu coraçãozinho inevitavelmente se acelerou bastante.
"Menos disso, doutora." O homem pediu. "Ou vou ter que pedir que saia".
A criança olhou para ele, sentindo um pouco mais de segurança, afinal era um adulto lhe defendendo. Ele não tinha feito nada de errado, e se era errado não entendia o que poderia ser.
Então precisava focar em fazer o que eles pediram, sua mãe sempre dizia que ele era muito esperto, podia facilmente mover o copo.
E foi o que ele fez, colocando as mãos para trás e respirando fundo, usando a ponta do nariz pequeno, que ainda era avermelhado como uma marquinha de sol.
Assim, o copo de plástico foi movido sem as mãos, e ele sentiu que tinha feito um bom trabalho, então olhou para Arabel, esperando que ele lhe dissesse isso.
A expressão real do mais velho foi facilmente vista por ele, ele não sabia o que significava, mas sentia que era um pouco sufocante recebê-la, porque novamente, não estava acostumado com aquilo.
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A Queda de Áster
Fantasía18+ Áster é um mágico e ilusionista trambiqueiro de primeira linha que viaja com seus amigos de volta à sua antiga cidade com o circo, o Arcana, no entanto suas intenções vão além de fazer apresentações e shows. Quando um objetivo obscuro assombra...