❝ teu amor apaga toda existência ruim que há em mim. ❞
Parte 4.
A criação humana sempre foi misteriosa, até mesmo para a maioria dos deuses. Almas livres, ao mesmo tempo condenadas ao longo das limitadas vidas, sendo manipuladas por uns e outros, nunca fazendo o que se quer sem ter uma visão alheia do redor. Penando por seus erros e, outrora, gratos por algo trivial em suas vidas. Sempre sendo moldados pelo entorno, de acordo com o que absorvem.Mas e um deus? Deuses nascem do desejo mais cru e comum da alma de um grupo de mortais. Porém, isso nos leva à seguinte questão: como meros mortais têm tal poder para criar um deus?
E ainda deixo algo para pensar: por que deuses possuem tamanha semelhança física com mortais?
Quando Desmonter abriu os olhos, numa manhã chuvosa de outono que cobria as ruas de Seul com neblina branca, ele apenas suspirou. Sentado sobre o concreto lateral de uma das pontes daquela capital, ele sentia a roupa sendo encharcada pela água fria e fina cada vez mais rápido.
O tráfego atrás de si só não era tão barulhento quanto os gritos que seu coração entoava a cada batida.
Era assim já há pouco mais de trinta anos. Desde a perda de seu amado.
A data tão preciosa, onde puderam transbordar de amor mútuo diversas vezes e de várias formas juntos, transformou-se em uma data de luto. A mente do deus da calamidade era tomada por memórias turvas, e seu peito, por uma culpa corrosiva.
Ele então se ergueu na ponte, cansado de observar as águas agitadas; quase não tinha o que fazer. Havia tantos deuses da calamidade que nenhum tinha muita função, a não ser existir. Desmonter esticou os braços num alongamento desajeitado, sentindo os ossos estalando no processo, e então, quando pegaria impulso para pular alto o suficiente para ultrapassar as nuvens e alcançar o outro lado da cidade, uma mão agarrou-lhe a camiseta e o puxou diretamente para o chão.
Seu corpo bateu contra o de alguém e ambos caíram sobre o concreto.
— Mas que diabos... — Desmonter resmungou, atordoado.
Ao erguer parcialmente o corpo, percebeu que um homem ainda o segurava, mesmo no chão. Ele estava sobre si, ofegante e molhado. Mais ao lado, um guarda-chuva rosa jazia caído e esquecido. Era um mortal.
Os olhos de ambos se encontraram quando o humano segurou Desmonter pela gola e o puxou para perto, expressando indignação severa. O deus arfou, chocado, assim que aquele rosto inesperado lhe encarou.
Era exatamente a face de seu Bêlto.
— Você não pode se jogar só porque sua vida está ruim! — o mortal gritou. Até sua voz era idêntica à voz do antigo deus do amor. — Vai ferir todos que te amam e nunca vai saber se pode melhorar o que tanto odeia ao seu redor!
— Como você... Você está mesmo aqui? — O deus ergueu a mão, fragilizado, mas se deteve antes de alcançar a face alheia. O medo de fazer seu amado sumir outra vez causou-lhe o maior arrepio que já sentiu.
Lágrimas brotaram nos olhos de Desmonter. Como aquilo era possível?
— Sei que muita gente ignora suicidas, mas Bêlto jamais! Então sim, estou aqui.
Até o mesmo nome.
Bêlto, o mortal, se ergueu e procurou seu guarda-chuva, estendendo a mão para ajudar o outro ainda caído. Não teve nenhuma reação do mesmo. Estalou a língua no céu da boca e revirou os olhos, sem paciência alguma, agindo por conta própria e puxando, por sua dedução, o suicida novamente pela camisa. Puxou Desmonter até que ele fosse andar debaixo do guarda-chuva e o levou consigo para casa como se fosse um gato abandonado e mudo.
Desmonter não falava, não ouvia, não entendia. Apenas olhava o rosto de Bêlto com aqueles olhos intensos e marejados, desconcertantes.
Deu-lhe roupas suas e o empurrou para o banheiro. Fez comida para ele e arrumou seu sofá para que o outro dormisse. Não deveria ter levado um estranho até sua casa e lhe abrigado, mas era quase um instinto vindo do mais profundo de sua alma.
Por via das dúvidas, ele trancou a porta assim que entrou no quarto. Mesmo sem temer, era o mínimo de sensatez que deveria ter.
Mas o deus da calamidade não dormiu. Estava acordado demais para dormir. Por isso, levantou-se e invocou, com seu poder, um portal negro diante de si. Daquelas sombras, a imagem de seu velho amigo Wogard surgiu, sonolento.
— É possível um deus renascer como humano? — foi direto.
Wogard piscou algumas vezes e, bastou ver a ansiedade no rosto do outro, para saber o que estava acontecendo.
— Você acha que mortais poderiam dar vida a novos deuses, se eles fossem desprovidos de divindade?
— Bêlto está aqui. Não é engano...
— Finalmente se encontraram, parabéns, irmão! — Wogard bateu palmas satisfeito por saber mais que Desmonter sobre os segredos divinos.
— Parabéns? Wogard, se eu tocar nele, eu o mato outra vez!
— Não necessariamente, mano. Humanos têm almas parcialmente corrompidas pela calamidade, isso os torna impuros para o céu, por isso eles encarnam e reencarnam na Terra. São deuses antigos e novos, todos mortos por desobedecerem as ordens supremas do Mais Poderoso e se juntarem a nós em algum momento.
— Isso quer dizer que eu posso... tocá-lo?
— Uma flor murcha e um deus do amor morre, mas um mortal é isento disso. Só podemos matá-los em campo de batalha ou influenciá-los como desejarmos, Desmonter. Ele não vai mais morrer pelo contato de sua pele.
Então era isso. Será que seu Bêlto, enquanto deus, sabia disso? Não, ele teria lhe dito.
Seu Bêlto... Ele não se lembrava de Desmonter nem do amor de ambos.
— O que eu faço, Wogard?
— E o que mais seria? Reconquiste-o por quantas vidas durarem seu amor e sejam felizes em todas elas!
Desmonter sorriu e a imagem do amigo desapareceu no ar. O sol voltava a brilhar lá fora, como se nunca houvesse chovido.
Da mesma forma como seu Bêlto voltou, como se nunca houvesse partido.
...
↬Nunca ousou passar pela minha mente cruel uma continuação feliz. Eu criei essa short history para permanecer com um final melancólico em aberto, porém, reconheço que a vontade de criar alguma cena luminosa depois do fim se tornou existente conforme os pedidos por uma aumentam ao longo dos anos, quando isso ainda era uma fanfic NamJin.
Então cá estou eu, trazendo esse final feliz.
Obrigada por lerem essa história e viverem esse amor junto com os BêlMonter, e espero que acompanhem meus futuros projetos nessa conta.
Com amor, S.Hell.
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BÊLMONTER
Romance[CONCLUÍDO] Desmonter, um demônio calamitoso nascido do desejo de morte humano, e Bêlto, um dos vários Deuses do amor que existem no Paraíso, apaixonam-se um pelo outro de forma inesperada. Porém com a intragável lei de nunca se tocarem devido aos...