Todos os corações estavam descompassados. As pessoas pisavam no chão com hesitação. Mãos trêmulas sacudiam as bolachas antes de passarem para as mãos firmes de Canindé, e sua dezena de anéis e tantas centenas de calos. Um desses anéis barrou o efeito dos poderes de Maria José, fazendo de Canindé o único naquela fazenda a não sentir a ressaca de quem desperta de um pesadelo somente depois de toda a desgraça onírica ter se desenrolado de cabo a rabo.
Qualquer análise superficial classificaria a ação da menina como um fracasso condenável. Um risco desnecessário e incompensável. João não era dado a análises superficiais e qualquer ação que pudesse lhe render algo acima de um conto de réis nunca seria tratada como fracasso e muito menos como irredimível. E dois contos de réis eram uma boa recompensa. Como de costume, João só levantou do sofá quando seu bando já estava com metade do pagamento no sobresselente, não sem antes de tentar entender o risco inevitável da missão.
— Está de troça comigo, compadre? — antes de ser atingido pela descarga emocional de Maria José, o coronel Souza não se dirigia a João. — É isso o tal bando de cangaceiros de que vosmicê me falou? Três cabras e uma criança? Um deles cego dos dois olhos, ainda por cima! — nesse momento Maria José estava despejando café em uma xícara — Vosmicê me falou que tinha contato com o bando de Nogueira e Chico Pedra, eu vim achando que encontraria aqui de vinte cabras pra lá! Perdi a viagem.
— Compadre — falou o Coronel Caetano, a voz trêmula por receio de que as ásperas palavras do correligionário lhe custassem dividendos para com o bando ali asilado, — houve algum deslize na nossa comunicação. Falei que aqui estavam cangaceiros do bando, não o bando todo.
— Mas vosmicê me fez a propaganda maior do mundo... chegou a dizer que eles deram cabo do Mamolengueiro--
— Demos — interrompeu João. — Com a ação direta daquela moça ali. E, se vossa mercê me permite o conselho, não a chame de criança em um momento que ela possa lhe escutar. E agora que já fui apresentado a sua pessoa, estou certo de ter sido eu a ter perdido a viagem. Porém, já que estamos aqui, vou te dar mais uma chance de explicar o seu problema e como nós podemos resolvê-lo. A hora é agora, enquanto a nossa associada está se servindo. Assim que ela terminar de comer, nosso assunto com vossa mercê estará encerrado.
O coronel e o sofá em que ele estava bufaram. O movimento denunciava se tratar de um homem corpulento, biótipo típico dos homens ricos do pobre sertão. João já havia concluído isso a partir do tom de voz, do padrão de sua circulação sanguínea e a respiração roncada.
— É muito desaforo, — bodejou o coronel com a discrição de quem nem imaginava que João era capaz de ouvir as lombrigas se movendo em suas entranhas. — Me chamo Coronel Souza e sou proprietário de um punhadinho de terrenos nessa região. De uns quinze dias pra cá minhas posses vem sendo atacadas e destruídas por uma criatura — dessa vez o sofá suspirou na outra ponta sob um corpo franzino se contorcendo, desconfortável, conforme o coronel falava. — E essa coisa já apareceu em três propriedades minhas, sem causar grandes estragos, graças a Deus, apesar de ter posto abaixo uma casa de sementes. Meu medo é ela avançar contra minhas plantações ou até mesmo a minha residência. Também corro o risco de, se não fizer nada, a peãozada começar a procurar desculpa para evitar o trabalho e aí eu ter prejuízo de gado ou colheita. Esse povo pensa que eu consegui minhas posses inventando desculpas pra fugir do trabalho, tá aqui compadre Caetano que não me deixa mentir. Aí de uma hora pra outra assim eu perder tudo? Só se eu tivesse doido.
— Esse monstro, senhor Souza, matou alguém? — João tangeu a conversa para outro tema que não o próprio coronel. O jovem deu um salto no sofá.
— Ele derrubou umas casinhas, umas barracas. Prejuízo mesmo foi o armazém, pelo menos não havia muito grão estocado. Destruiu também o carro do meu neto. De morte mesmo eu acho que foram três ou quatro cabras contratados meus. Hein, Mateus — o coronel projetou a voz para a outra ponta do sofá, — três ou quatro? se lembre aí.