Culpa

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-Você mudou bastante.
     Ele sorriu, sem jeito. Um sorriso curto, breve, tímido. Os dois haviam se encontrado pela primeira vez depois de dois anos sem nenhum contato. Ela havia tentado manter um equilíbrio, criar um espaço para uma amizade, mas o término o havia afetado profundamente, e o fato de ela ter começado a namorar poucos meses depois fez com que sua fraca saúde emocional deteriorasse apesar de seus esforços para se manter forte.
    -Eu fiz uma lista, depois que deixamos de nos falar - ele tentou não encolher os ombros - fiz academia pra perder peso. Correr uma maratona era um sonho de infância...
    Ela ergueu uma sobrancelha. Houve um momento de silêncio entre os dois. Um silêncio desconfortável, interrompido apenas pelo barulho típico de lanchonete movimentada em uma manhã de segunda-feira meio cinza.
    -É bom te ver de novo - a boca dela se apertou em uma linha fina.
    -É-é? E-eu digo o mesmo... É muito bom... te ver de novo...
    Ele cutucou o pedaço de torta que tentava se obrigar a comer. Ela suspirou fundo:
    -Eu acompanhei seu trabalho. Demorou um pouco pra descobrir que estava publicando profissionalmente - ela bebericou o café - Certo dia estava no shopping e passei diante de uma livraria. Foi puro acaso que vi seu livro. Depois lembrei daquele blog no qual você costumava postar seus textos. Lembra daqueles? Enfim, se as coisas não tivessem terminado como terminaram, teria sido muito gostoso estar do seu lado quando você realizou esse sonho. Sair pra comemorar e tudo mais...
    Ele encarou a mesa, tentando desviar do olhar dela. Era firme, e ele se sentia pesado, de culpa. Na sua mente, um turbilhão de pensamentos que mal conseguia ouvir. Diante da falta de resposta, ela colocou uma colher de açúcar no café e continuou:
    -Você me machucou, naquele dia - ela afiou os olhos - eu te avisei para não criar expectativas. E eu estava feliz com o espaço que você pediu pra mim. Porque senti que estava melhorando, e imaginar que você estava melhor me fazia sentir bem. Eu estava carregando comigo apenas as coisas boas que tivemos porque aprendi com as coisas ruins, e estava pronta para começar uma amizade. Mas teríamos de construir isso aos poucos, devagar.
    -Eu... eu sabia de tudo isso. Eu ainda era capaz de saber como você se sentia mesmo quando não nos falávamos...
    -Então por quê?
    -Eu... eu não tenho desculpas para o que fiz... - ele esperou que ela dissesse alguma coisa mas ela ficou quieta, esperando - Eu sabia que você ainda não estava pronta pra estar perto de mim de novo. E eu entendia as razões. E eu estava sim... melhorando...
    -E então?
    -E então... outra crise. Lembro do ciúmes. Veio tão de repente...
    -E você me machucou.
    Mas ele não soube o que dizer. Não sabia bem o que dizer. Havia revivido aquela manhã tantas vezes...
    -Eu queria muito ter sido sua amiga, sabe. De verdade. Mas eu te avisei que tinha coisas demais na minha vida naqueles dias, que não tinha como te dar a atenção que você me pedia tanto. E que eu ainda estava entendendo como seria... ser sua amiga. Você repetiu várias vezes que não estava criando expectativas. Eu pedi várias vezes para não fazer isso. Mas eu acordo no dia primeiro - seu rosto se fechou por completo - primeiro! Primeiro dia do ano! Com você empurrando todas as suas inseguranças e seus ciúmes, totalmente injustificados, aliás... simplesmente explodindo no meu celular... uma enchente de mensagens desesperadas e tão... cheias de um rancor... Eu senti... TANTA COISA! E no final só ficou uma raiva. Uma raiva de você me fazer passar por aquilo...
    -Naquele dia...
    -...De novo! Todas as nossas brigas da época de namoro... e daquela vez você me acusou! De tanta coisa sem noção! Tanta coisa... nada a ver! Você sequer leu o que mandou pra mim? É sério que você distorceu a noção de não-monogamia só pra me dar aquela última pancada no coração? Precisava mesmo chegar nesse ponto, tão baixo assim? Você imaginou como eu me sentiria?!
    O coração dele apertou em uma dor nauseante. Lembrou das mensagens cheias de um... ressentimento azedo. De um ciúme ácido. Ela havia feito tanto por ele, mas a retribuição tinha sido... uma série de explosões de crises amargas. Ele se encolheu na cadeira, sua falta de palavras a convidando a continuar:
    -Você foi uma pessoa muito especial pra mim. Eu te amei muito. Muito mesmo. Mas no final você foi...
    Ela respirou fundo, tentando não perder a postura.
    -Eu não soube te amar...
    -Você não soube me amar? Eu pedi tão pouco! Tão pouco! - ela recuperou o tom depois de um soluço intruso - O que eu pedi? O que eu esperei de você? Eu nunca exigi mais que aquilo que você me deu quando nos conhecemos. Quando me apaixonei por você, você era todo atenção. Você era carinhoso e presente emocionalmente e você... você me fez sentir especial... Me fez toda boba. Você não tinha de aprender a me amar. Tudo que eu pedi foi para que me amasse como me amou naquele dia, quando nos vimos pela primeira vez. A-até mesmo antes disso... mas com o tempo, você parou de olhar pra mim. Você me fez sentir... manipulada... Usada.
    -Eu nunca... nunca te manipulei de propósito... A depressão...
    -De propósito ou não, foi como eu me senti.... - ela colocou outra colher de açúcar no café - E eu vivia pedindo pra você buscar ajuda. A cada briga, a cada desentendimento. Você sempre dizia que ia trabalhar em si mesmo, na sua saúde emocional. E la ia eu, outra vez, te abraçar, estar do seu lado. Aguentar. Ah, eu aguentei tanta coisa. Tanta coisa! Sempre na esperança de que, dessa vez, você ficaria melhor. Que, dessa vez, o pior havia passado, e tudo aquilo seria só um detalhe curto e breve na nossa história... Eu amava nossa história. Ainda amo. Mas agora só carrego alguns trechos. E mesmo esses...
    -...
    -E como amiga... eu só precisava de respeito. Foi o que eu te pedi. Respeito! Que respeitasse meu espaço, meus relacionamentos. Que entendesse isso. Que entendesse que o passado havia acabado e que demoraria para construirmos uma coisa nova. Que entendesse que eu ainda... ainda não estava completamente sarada de você. Que uma parte minha ainda tinha medo...
    -Medo de mim?
    -Não - ela experimentou o café - Medo de mim. Medo de que, de alguma forma, ainda houvesse um pouco da paixão aqui dentro. Que a admiração que tinha por você pudesse inflamar e eu acabar me vendo... Eu só queria que entendesse que apesar de estarmos nos falando pouco, eu ainda gostava de você. Mas que precisava gostar do jeito certo. E esse gostar... esse gostar não poderia ser uma paixão. Mas ainda queria gostar. E tive a esperança, por um momento, de que não haveriam mais crises. Só que eu estava errada. E tive de cortar você pra fora da minha vida porque, sinceramente, não aguentaria mais uma. Não depois daquela.
    Ele tornou a se encolher ainda mais. Queria contar como havia aprendido (da forma mais difícil) a ser melhor que aquilo. Queria contar como fazia anos desde a última crise, e como havia aprendido a se amar e viver bem. Como havia crescido, e se tornado uma pessoa melhor. Mas sentiu que, àquela altura, era tarde demais pra ela. Tarde demais para eles. Relembrou as mensagens que mandou logo após a virada de ano, tanto tempo atrás. As palavras horríveis saltando pra fora como sangue esguichando de uma veia belicosa estourada. Aquela era a última chance dele de tê-la em sua vida, mesmo que em uma amizade distante. E uma crise, que ele havia falhado em conter, a havia destruído. E não existia desculpas, porque ele havia falhado de novo e de novo em se tratar. Ele não havia limpado o pus da ferida, a infecção havia piorado, e ele havia derramado sua podridão em cima de outra pessoa. Uma pessoa que lutou do seu lado e lhe implorou para que buscasse ajuda e aprendesse a cuidar de seus machucados.
    -Você me machucou muito naquele dia - ela repetiu, a voz seca - Você sabe bem as lutas que tive na minha vida. O quanto apanhei para conseguir cada pequena vitória. O quanto tive de correr, pular... E você esqueceu disso tudo na hora da sua raiva. Na hora da sua crise. E você matou. Matou o carinho que eu ainda guardava de você.
    Ele balançou a cabeça, derrotado. Merecia muito aquelas palavras. Algumas cenas do namoro passaram por sua cabeça, momentos tão lindos. Mas ele se arrastou para fora delas de volta para aquela mesa. Suas mãos tremiam enquanto empurrava pedaços da torta agora destruída com a ponta do garfo, imitando uma versão grotesca de um jardim zen. Ele não esperava nenhum perdão, só que acabasse logo. Que acabasse logo, porque o coração dele estava prestes a doer como não havia doído em anos. E ele não sabia o quanto mais aguentava.
    "Mentira", disse uma voz dentro dele, "você sempre buscou um jeito de ter o perdão dela. Você só nunca o mereceu. Todas as vezes que esteve perto de ajeitar as coisas, deixou tudo pior. Mas depois daquele dia desastroso, sempre foi dormir pensando que daria qualquer coisa para ter um perdão. Um perdão do qual teve medo."     Mordeu os lábios. É verdade, tinha medo até de ser perdoado. Porque teria de continuar longe dela de qualquer forma, e talvez, esse perdão só o deixasse com uma sensação ainda maior de vazio, pois temia não haver nada que pudesse trazer de volta o que havia perdido, não importa o preço que ele pagasse. E estava certo. Não havia mesmo.
    -Foi... foi horrível, o que eu fiz contigo.- ele finalmente conseguiu dizer - as mensagens naquele dia... te bloquear daquele jeito...as acusações...o que eu disse...
    -Você me julgou. Você julgou meu relacionamento. Você julgou minha forma de me relacionar... e fez isso de uma forma muito errada e tão...
    -Machista. Eu sei.
    Outro silêncio.
    "Você precisa dizer alguma coisa". Mas ele não sabia o que dizer. Ele era o único culpado pela série de desastres emocionais que haviam destruído a melhor amizade que já tinha tido. Ele havia sofrido por isso, todo esse tempo sem poder falar com ela. Sem saber como ela estava, sem poder estar perto dela. Sem poder compartilhar os momentos de felicidade, nem oferecer seu apoio nos momentos de dificuldade. Mas ela? Ela havia sofrido muito mais. A dor dele era apenas consequência de seus erros. O erro dela era ter se apaixonado e amado alguém tão machucado e, para não diminuir sua culpa, alguém que havia falhado em aprender as lições no meio do caminho.
    -Você... - ele pigarreou - Por que... por que você quis me ver? Achei que, depois de tanto tempo, depois de todos esses anos... Depois de todo esse tempo eu achei que nem se lembrava mais de mim...
    -Eu te vi no campus.
    -Ah...
    -Ano que vem estou me formando. Fiquei surpresa quando soube que estava estudando lá também.
    Ele a observou pelo canto dos olhos, a cabeça ainda baixa.
    -Você ainda está fazendo tratamento?
    -Estou sim - ele parou de mexer na torta.
    -Eu te disse isso antes, mas sempre vi um potencial enorme em você. Um potencial humano. Um potencial de compaixão, um jeito íntimo de entender e amar as pessoas.
    -Algo que eu não soube...
    -Não soube mesmo. Pelo menos na época que te conheci - ela voltou a colocar mais uma colher de açúcar no café. Ele sentiu uma sensação engraçada ao observar ela fazer isso, como se alguma coisa não estivesse muito bem certa, mas não soube dizer o que era - Mas seus últimos trabalhos? Estão muito bons. Acho que você amadureceu um pouco. Continue fazendo terapia, e eu tenho certeza de que irá, de verdade, de uma vez por todas, vencer... tudo aquilo que precisa vencer.
    Ele deixou um leve sorriso escapar pelos lábios apertados diante daquele elogio. Pela segunda vez ficou tentado a dizer que já havia vencido seus problemas, mas ficou quieto. No passado ela já havia sofrido vezes demais ouvindo aquela mesma coisa. Ele não ousava reviver nela aquelas lembranças, mesmo que dessa vez fosse a honesta verdade.
    -Eu...
    -Sim?
    Silêncio. Um casal começou a discutir em uma mesa nos fundos da lanchonete. Ele tentou ignorar a coisa toda mas o barulho dos gritos parecia ecoar na lanchonete inteira. Olhou para a mesa deles e, sentindo a mesma sensação esquisita de antes, percebeu que o casal parecia estranhamente familiar. Mas quanto mais tentava prestar atenção neles, mais tinha dificuldade em em distinguir quaisquer detalhes da feição de ambos. Seus rostos lhe pareciam um borrão vazio.     Ele engoliu seco.
    -Eu te vi no campus.
    Ele voltou a atenção para ela, sem pisar olhar diretamente para seus olhos. A situação toda começou a lhe causar uma enorme sensação de déjà vu. Um arrepio atravessou suas costas. Desconfortavelmente distante.
    -Eu te vi no campus. Fiquei surpresa quando soube que estava estudando lá também.
    -Você... - ele hesitou - porque você... quis me ver? Depois de todo esse tempo eu achei... eu achei... que tivesse me esquecido...
    -Ah, mas eu esqueci. Você foi incrível e tivemos algo muito mágico, mas só durou alguns meses. Você achou que eu ainda pensaria em você, depois de tanto tempo? Depois de me machucar tanto? Você acha que é tão especial assim?
    Ele ergueu os olhos e a encarou, surpreso com a resposta e com o tom absolutamente frio dela. Para o seu horror, seu rosto também era um borrão sem feições.
    -Você também, já vai me esquecendo. Acha que não percebi que durante essa conversa toda você não conseguiu lembrar o meu nome?
    -E-eu...
    -Então não espere que eu ainda lembre de você. Na verdade, não li nenhum dos seus trabalhos. Nem seu livro. Nem sequer lembro seu nome.
    Ele tentou dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas sua boca se recusava a abrir. Para o seu horror, percebeu, não tinha mais uma boca. Quando se levantou, abruptamente, o garfo escapou de seus dedos, e acabou derrubando a torta. Diante dele ela também estava de pé, xícara na mão.
    -Olhe.
    E como uma marionete, ele sentiu seus braços serem obrigados a pegar a xícara oferecida, e seus olhos se arregalaram ao ver uma superfície clara refletindo seu rosto como um espelho. Ou os arregalaria, se os tivesse; ali refletido havia apenas um borrão disforme, como um boneco de cera derretido.
    -Viu só? Já não lembro o seu nome, e não lembro o seu rosto. Eu não guardei nada de você. Que pena...

    Ele esfregou o rosto. Havia chorado enquanto dormia, de novo. Era o mesmo sonho de sempre. Já havia passado mais de uma década desde que não tinha mais contato com ela, mas ela ainda assim o lembrava de seus erros. Não, ele. Era ele. Ele que o lembrava e o cobrava toda semana.
    Ainda deitado, ele se perguntou quantas pessoas viviam assim, com medo de serem esquecidas, com medo de serem lembradas. Lembradas apenas por seus erros, suas falhas. Com medo de que, não importa o que fizerem, jamais irão curar os machucados que causaram...

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