99. [Lacunas] Parte A

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Quinta-feira, 02 de Outubro de 2003.

O dia já amanhece pesado: o céu está cinza, nublado... Parece que combina com o jeito como Helena se sente por dentro: sem cor, sem vontade de nada, sem reação. Ela abre os olhos quando ouve o agudo do despertador; respira fundo, os fecha de novo... Relembra que o 'flagrante' de ontem realmente aconteceu, não foi sonho ruim, foi real. Ela se sente estranha, um tanto quanto perdida por ainda não ter conseguido processar, por estar envolta a mil pensamentos, sendo constantemente cutucada por uma infinidade de gatilhos que não a permitem discernir com clareza as coisas. Porque tem isso, né? De concreto, de efetivo, Helena não pegou uma traição, não houve ali a materialidade da ação - até onde se sabe. Claro que o que ela viu, sob a lupa de qualquer qualquer um, seria ensejo para brigas, chateações e  discussões acaloradas - ninguém passaria inerte vendo outra mulher tocando em seu parceiro, não sejamos hipócritas. Principalmente o toque vindo de quem veio, acompanhado por um olhar debochado e malicioso como o que Tereza ofertou à Helena. Por isso, era de se esperar briga, briga, sim, talvez até acusações... Mas seria isso e só isso para a maioria dos casais. 

Mas é César... E Helena. Muitas vivências, várias histórias mal resolvidas e um histórico bastante duvidoso. Essa é a razão para tanto alarde, eu acho: ocorre que ali, o grande problema é simbologia da cena - uma massagem feita por uma assistente justo nele. Aquilo sempre foi o movimento primeiro de César para o que quer que fosse que viria a partir de então, era a cartada inicial de seus flertes. Por isso Helena está tão confusa: a cena que ela assistiu é suspeita, mas ela não pode acusá-lo de traição porque não foi o que ela pegou, não foi o que ela viu. Ele refutaria com ira qualquer suposição dessa natureza vindo dela, houvesse ou não a infidelidade - baseado apenas no que ela viu, ele refutaria. E é por isso que a vontade que Helena tem realmente é a de sumir, sumir pela mágoa e sumir para alocar cada um de seus pensamentos com calma. Por sorte, o medicamento tomado na noite anterior a ajudou a pegar no sono e ela dormiu à meia luz mesmo, vencida pelo cansaço enquanto tentava achar algum sentindo em tudo o que havia acontecido.

Apesar de tudo, como não poderia deixar de ser, ela opta por seguir com a sua rotina: às quintas, ela dá aula a manhã toda. Sendo assim, a vontade de sumir acaba ficando no plano dos desejos que a vida adulta nos impede de fazer porque a realidade existe: tem a rotina, filho, trabalho e uma gama infinda de responsabilidades. Então ela sai da cama com certa lentidão, olha para a mesa de cabeceira e vê o celular ali de canto, abandonado. Decide ligar o telefone e, pronto: vibra uma, duas, três vezes. Três anúncios de caixa postal, três ligações de César. A última aconteceu próxima à meia noite, mas a essa altura, ela já dormia e dormia justamente com o aparelho desligado. Deliberadamente, Helena optou por desativá-lo quando o seu telefone fixo tocou; esse telefonema, por sinal, ela não sabe se realmente foi dele, mas o conhece bem para saber que ele insistiria (como insistiu) para tentar contatá-la. 

Essa desconfiança se baseia em dois motivos principais: o primeiro é o fato de que aquilo, ligar a noitinha e conversarem por longos minutos, ter se tornado um hábito protocolar ao longo desses meses de namoro - um sempre está esperando a ligação do outro, então só o fato dela não estar ali, disponível para atendê-lo, ele já estranharia. O segundo motivo que a fez pensar que a ligação no telefone fixo era de César, se deve justo a orientação dada por ela à Marcinha quando decidiu não permanecer na mansão: se a menina informou ao pai que Helena não ficou porque estava com muita dor de cabeça, é certo que ele a procuraria para checar seu estado. E ela não atendendo, é aí que ele se preocuparia mesmo. E pensando bem, ela acha até um terceiro motivo: César não é bobo, ele devia ter percebido ela mais... Mais murcha, mais evasiva na visita ao consultório. Pode não ter entendido o motivo - o que ela acha bem difícil, na verdade, porque, por Deus: estava evidente! Mas ele deve tê-la notado diferente, sim. Ele a conhece bem demais... Como não perceber que o beijo pelo qual ele pediu foi morno? Que a pele arrepiava por qualquer outra coisa, menos por amor? Então era certo que, por alguma dessas razões ou por uma combinação delas, ele ligaria, como ligou. E encontrou tudo, menos Helena. Ao invés da voz da mulher que ama, falou com Sônia e o que ela disse pra ele nos ajudará a entender parte do estresse e indiferença com que César agirá ao longo desse dia. Mas para isso, sigamos!

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