Após o brutal ataque, o pequeno Shiro, lutando pela consciência, se via sendo carregado por diversas pessoas diferentes. Ouviu os gritos que eram abafados pela confusão da sua cabeça, sua visão era como o borrão de um pincel sob tela. Por um momento, viu o avô, que o carregou para os braços de uma mulher em branco, e sumiu dentre a multidão desesperada. As curtas memórias atingiram sua mente como uma cachoeira, remexendo-o em um frenético pesadelo, até finalmente acordar. Estava numa enorme sala de cor branca e azul. A visão embaçada dificultava o entendimento, pior eram as pessoas que, de um lado buscavam por ajuda ou agonizavam de dor, enquanto macas ocupadas eram movidas ao longo do corredor. Tudo que pensava era no avô e no irmão, chegou a sussurrar os nomes de Hugor e Isaac. Virou a cabeça para os lados, deu de cara com outras pessoas desconhecidas que estavam deitadas lado a lado. Aterrorizado e perdido, Shiro tentou se levantar, porém a dor em todo corpo era absurda; o braço direito, cabeça e abdômen estavam enfaixadas, uma de suas pernas tinha uma tala de madeira, totalmente improvisada. Era difícil retomar a consciência, o barulho em sua volta o confundia nos sentidos, e aos poucos, a visão delatou ainda mais: dezenas - talvez centenas - de pessoas deitadas no chão em sacos de dormir, todas tinham sinais de ferimentos e queixas dolorosas. As enfermeiras corriam desesperadas para atender o máximo número de pessoas possíveis. A caótica confusão fazia com que alguns curativos e medicamentos caíssem no chão, junto com muletas e bengalas. Lutou contra a dor para se levantar e se amparou com um dos apoios abandonados. A cabeça enfaixada latejou fortemente com um zumbido, manteve-a abaixada enquanto se esforçava na caminhada. Começou a procurar por sua família, repetia o nome do avô e do irmão para os lados, cada vez mais alto. Havia uma vontade contraditória de querer e não querer encontra-los naquele lugar. Sob o coxo andar melancólico, viu o terror mais de perto; algumas vítimas se contorciam sobre as macas, enquanto alguns se mantinham no silêncio do pós-choque, com olhares fundos e mortos de quem viu e sentiu o terror na pele. Chegou a ver uma outra criança com os olhos completamente vendados de ataduras, outro paciente que lutava para respirar com uma espécie de tubo médico que invadia os pulmões. Viu uma infeliz vida que se perdia na sala; uma jovem menina, cujo os atuantes da saúde fecharam seus olhos e o saco, carregando-o até o fim do corredor. Shiro seguiu aterrorizado e calado, vendo que o corpo era levado para o saguão, onde mais pessoas aguardavam o socorro. Foi atrás com seu caminhar lento e manco, nenhuma enfermeira presente se importou com o garoto que tentava se locomover, afinal, era mais importante priorizar as vidas que se perdiam por falta de atenção, do que aqueles que já lutavam para se manter em pé.
Shiro viu a porta de saída para onde era levado a falecida garotinha, seguiu até o fim para dar de cara com a caótica Symphas, aos destroços. Toda a cidade estava em pânico, pessoas corriam de um lado para o outro, alguns choravam no meio das ruas, um pelotão de resgate se movimentava em coordenação, um líder religioso profetizava palavras divinas aos céus. Nas calçadas em frente ao hospital estavam as fileiras de sacos fechados, onde foi colocado o corpo da menina junto aos demais. Não havia encontrado sinais nem do avô ou do irmão, na distância ao centro da rua havia uma fonte d'água, viu a silhueta de um homem que parecia muito com seu avô e começou a se aproximar na esperança de encontra-lo são e salvo. No caminho do vagaroso andar, ouviu os gritos de choro dentre os falecidos ao lado; era a lamúria de um homem que, ao abrir o saco da desconhecida garota falecida, agarrou-a aos prantos caindo de joelhos ao chão. O fúnebre ambiente o desconcertava, se aproximou da fonte onde o único homem se sentava e o mesmo o ouviu chegando, confirmou a única esperança que restou; era realmente Hugor. "Vovô!" gritou o garoto que, soltando-se da muleta, correu em disparada para abraçar o velho. Não teve forças para retribuir o abraço, ambos se olharam, porém a feição de Hugor era de pura exaustão. Estava completamente derrotado; todo o corpo estava sujo de sangue já seco, a roupa rasgada, os olhos fundos e a nítida dificuldade de respirar davam a entender que o que acontecera enquanto Shiro estava desacordado, era mais sério do que se poderia imaginar:
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A Crônica do Odiado
FantasyA aparição de uma criatura milenar acaba por mudar os rumos de Shiro Langstaff, e de toda grande cidade de Symphas. Com o simples desejo de seguir os passos do irmão, ele se depara com peças de um quebra-cabeças que, aos poucos, começa a relevar seg...