Cap #01

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  Foi na última noite do ano. Fazia calor e ventava, um cheiro de maresia vinha do mar. Em meio à sombra morna, surgindo a intervalos sob a fraca luz dos postes, a menina caminhava pelas ruas.

  Ia descalça, vestidinho puído em cima da pele. Com roupa não se importava, nem sentia, mas seria bom que ainda tivesse os seus tamancos. Eram forrados de chita vermelha, vistosos, grandes por demais, e haviam se acabado antes mesmo que os alcançassem em tamanho, se gastado virando chinelos, sempre enormes, até se perderem na estrada. Lindos, lembravam alvarengas, barcaças ou canoas, berços navegando rente ao chão. Se agora pisasse neles, não machucaria tanto os pés.

  Apertou contra o peito a caixa de sapatos cambaia, espiando de soslaio o que estava dentro. Fogos de vender: rodinhas, busca-pés, traques as estrelinhas e os fósforos-de-cor. Tudo pouco, tudo pobre. Mas ninguém comprara nada o dia inteiro e ela não ganhara nem um tostão.

  Caindo de cansaço e fome, a menina quase se arrastava. O suor lhe empastava os cabelos agastados, alourados, e gotas escorridas vincavam o seu rosto mofino, onde os olhos afloravam apartados e rasos, separados pelo narizinho achatado que farejava delícias. Uns longes de rabanada, de canjica e canela, de carnes. Pois era véspera de Ano-novo, disso ela sabia. Ali andando sozinha.

  Conseguiu chegar à esquina, aboletou-se no vão entre duas casas. Agachada, escondida, um bichinho. De banda, a caixa com os fogos. Não vendera nenhum, como ia voltar? Pai desempregado, adoidado, capiongo de meter medo. E mais não tinha: mãe morrera, avó também. Casa, hem? Dou por visto. Igual a por aqui, no meio da rua. Se apareço e não trago nem um trocado, estou é pedindo pisa. Melhor não aventurar.

  Perdida de sono e fraqueza, um buraco adejando nela toda, contudo resistiu acordada. Reparou nos fogos, ali esperando comprador. E já que não tinha um só vivente na rua deserta, se pôs a olhar os fósforos coloridos. A olhar atraída, enfeitiçada, era o que mais queria. Talvez porque baratos, algum dia ao seu alcance. Por que não agorinha mesmo, hem, porque não? Encheu-se de coragem e, decidida, acendeu um.

  O fósforo lançou faísca, pegando tremeu e firmou-se na chama vermelha. A mão da criança tão desajeitada quanto ligeira, arqueou-se para abriga-la. Como se fosse a luz de uma vela. Encarnada, viva, maravilhosa. E nele a menina se viu muito antes, bem pequena, a brincar no terreiro com uma fieira de bonecas de milho. O vento cantava pelas ramas do umbuzeiro, o mundo cheirava a curral. Era bonito e dava pena de saudade. Mas a vacilante chama se apagou, o quintal sumiu, e ficou-lhe entre os dedos o fósforo queimado.



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Continua...

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⏰ Última atualização: Apr 30, 2023 ⏰

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A menina dos fósforosOnde histórias criam vida. Descubra agora