O Vazio de Dunkel

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         No lado leste do Condado de Dunkel existe uma enorme área inexplicavelmente vazia, onde nem mesmo as ervas daninhas crescem, e até os animais não ousam pôr os pés sobre o chão seco e sem vida tão vasto e vazio como um oceano de dimensões infinitas e águas negras; e nem mesmo as aves voam acima das terras malditas, pois é visível a aversão que todos os seres vivos – e isso inclui a mim e a todos os outros habitantes do condado – sentem diante do tal lugar.

         A natureza sinistra que permeia o cenário desde os tempos mais remotos fez com que surgissem ao longo dos anos os mais diversos tipos de lendas e crendices curiosas, e devo admitir que algumas delas carregam consigo uma verossimilhança histórica que simplesmente não posso – e não consigo – ignorar. Talvez seja o meu lado professor que esteja falando mais alto, mesmo que dentre todos os meus colegas da Universidade de Dunkel eu seja o único que pense em cogitar como reais as coisas que são passadas de geração em geração por estas bandas. Mas se não nas lendas, onde mais eu poderia encontrar significado para o medo irracional que se abate sobre todos os seres – pensantes ou não – que se aproximam do leste vazio e desolado de Dunkel?

         O princípio da revelação se deu com a demolição de um casarão decrépito de cerca de dois séculos de idade na região norte do condado, o qual esteve sob a posse de uma família de aristocratas - que há muito partiu daqui - que fez fortuna no passado através do plantio e da venda de culturas de trigo e cuja influência e poder ainda presentes mesmo após tantos anos me impediram de expor que - conforme revelado por minhas pesquisas e estudos - os lucros do negócio eram sustentados por mão-de-obra escrava vinda de outras terras distantes e sem que houvesse conhecimento por parte da Coroa ou dos líderes do condado – ou talvez tudo tenha sido arquitetado cuidadosamente por aqueles que apoiaram secretamente e em prol dos próprios interesses algo tão vil e hediondo como a escravidão. De toda forma, o decorrer do tempo e o sumiço da família tratou de encobrir maiores detalhes do que de fato ocorreu.

         Sobre o casarão, o terreno sob o qual se encontrava agora pertence a um jovem estrangeiro que fez questão de iniciar a construção de uma nova residência quase que imediatamente após a sua chegada, sem qualquer parcimônia. Durante a demolição, em meio aos destroços da construção e à madeira envelhecida antes presente nos pisos, nas paredes e no teto da casa, havia algo que chamou a atenção dos homens envolvidos na obra e logo a do próprio estrangeiro: a presença inexplicável de um velho baú - que aparentava ser ainda mais antigo do que a construção que o ocultava, embora fosse sólido e pesado como uma rocha – que continha em seu interior um livro de páginas ancestrais e escritas numa língua não mais usada. Não tardou até que o baú viesse – carregado por não menos do que uma dúzia de homens - até à Universidade de Dunkel.

         Quanto ao livro, ele acabou por ficar sob meus cuidados – o que parecia óbvio, tendo em vista que sou o professor de história e talvez seja o único que tenha esperanças de traduzir o que quer que tenha sido escrito em suas páginas. A tola esperança logo deu lugar à incredulidade: como era possível que não existissem documentos que sequer fossem semelhantes às escritas do livro que fora encontrado sob o casarão? Passei dias e noites incontáveis tentando a todo custo desvendar o mistério que se escondia naquelas páginas velhas tão frágeis que quase se desfaziam ao toque, mas os meus esforços não me levaram a lugar algum. Sem mais alternativas, parti de Dunkel e busquei o conhecimento de outros centros de ensino pelo mundo, na esperança de que ao menos um deles me trouxesse esclarecimento.

         A princípio, dirigi-me ao norte rumo à Inglaterra, onde permaneci por cerca de uma semana e extraí as mesmas informações que já se encontravam ao meu alcance – basicamente, não havia nenhum registro daquela escrita em lugar algum. De lá, parti rumo à França e em seguida à Península Ibérica, mas também não obtive respostas em nenhum dos lugares. Desta vez, vaguei pelo sul, nas proximidades do Mediterrâneo. Foi num vilarejo de pescadores à beira do mar onde finalmente encontrei o que tanto procurava.

         A escrita, ao que tudo indicava, era característica de pessoas que sofriam de uma doença mental não muito esclarecida – na verdade, o único registro que se tinha era o de um homem já falecido que chegou há muito tempo naquela vila – que afeta as capacidades cognitivas dos acometidos e os faz escrever de forma estranha e aparentemente irracional, e que também causa alterações no comportamento; não é de se admirar que o único caso registrado seja atrelado à uma possessão demoníaca, tendo em vista a quantidade limitada de informações catalogadas ao seu respeito – e cuja maioria é fruto dos estudos de um homem que precedeu os meus esforços no campo e cujo nome não me fora revelado. Foram esses estudos que permitiram que fosse possível a tradução daquelas palavras.

         Minha viagem pelo continente fora financiada pelo estrangeiro, que compartilhava do meu entusiasmo e curiosidade quanto à natureza daquele tomo decrépito. Agora, em posse das ferramentas necessárias à minha análise, retornei à Universidade de Dunkel, onde enfim desvendaria os conteúdos escritos naquelas páginas. A viagem de volta fora exaustiva, mas antes que me desse conta eu estava em casa, enfim, cerca de um ano após minha partida. Os dias que se sucederam foram dias de dedicação total ao estudo das escritas contidas no livro. Enfim, a verdade: se tratava de um diário que esteve em posse de um dos moradores do condado num tempo muito distante do nosso - e pelos detalhes fornecidos pela escrita, tenho certeza de que o tal sujeito morava onde hoje resta apenas o vazio hediondo do leste de Dunkel.

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