Chega até ser engraçado como Ícaro e eu estamos nos dando tão bem. Nosso envolvimento flui naturalmente e está bem mais íntimo. Depois que eu tenho perdido a minha insegurança, estou mais relaxado e isso influencia positivamente no nosso envolvimento. No início ele só se aproximava sexualmente de mim quando eu dava sinais de que eu também queria, e agora, essa aproximação simplesmente acontece como se nossas energias estivessem conversando harmonicamente. Além disso, eu tenho aprendido muito com ele coisas que eu sequer imaginava.
No sábado ele me convida para ir numa festa que vai rolar na casa de umbanda que ele frequenta. Bom, curioso do jeito que sou, aceitei de imediato. Eu nunca ousei conhecer nenhuma religião, não por falta de vontade, por comodismo mesmo, e também porque não entendo muito bem esse lance de acreditar em um Deus. Na minha comunidade nós só seguimos o ciclo da natureza. Nunca nos ligamos a religião. Mas existem ciganos que seguem. A maioria que eu conheci eram evangélicos e católicos.
Logo na entrada do local vejo muitas pessoas vestidas de branco. Temos que tirar nossos sapatos para adentrar o interior. Alguém nos atende na porta e joga na gente a fumaça de algumas ervas que queimam numa espécie de mini caldeirão. Ícaro me explica que isso é a defumação. Entendo que se trata de um tipo de limpeza energética. Em seguida nos acomodamos em algumas cadeiras que estão distribuídas no salão. Observo a decoração mística, há incensos, velas, imagens de santos e etc. Ícaro olha para mim como quem pergunta se eu estou bem e se estou gostando da experiência e eu sorrio em resposta, espero que ele entenda que estou bem e que estou gostando. Logo depois um homem aparece e se apresenta como dirigente da casa, junto com outras pessoas vestidas de branco eles fazem umas rezas que eu não entendo e só então a festa começa, uma tal de homenagem ao povo cigano. A princípio eu acho que isso tem a ver com a minha etnia, mas na verdade se trata de pessoas vestidas com nossas indumentárias. Essas pessoas se enfeitam com tecidos leves coloridos, joias e afins, ajudadas por outras. Acho um tanto quanto ridículo e estereotipado, porém depois percebo que não são as mesmas pessoas que nos receberam, bem, ainda é o corpo delas, mas a personalidade é diferente. Há uma mesa farta com comes e bebes, principalmente água, vinho, licor, pães e frutas, e eles dançam enquanto conversam com os convidados.
- Que doido isso - comento com Ícaro que come um cacho de uvas. Estou me sentindo uma verdadeira piada.
Ele ri da minha expressão de indignado.
- Eles são guias espirituais que incorporam usando a identidade cultural dos ciganos. Geralmente os guias escolhem papéis de pessoas que viveram ou vivem a margem da sociedade para mostrarem que somos todos iguais e que a ajuda pode vir de quem menos esperamos.
- Ah. Então quer dizer que esses que estão aqui são espíritos?
- Sim, espíritos incorporados nos médiuns.
Quando olho na direção da mesa, já pensando em pegar um vinho para saciar minha sede, Ícaro me barra.
- Você bebe e come só quando eles permitem - olho para seu cacho de uva e ele dá com os ombros. - Foi a cigana Samira que me deu. Quer se consultar?
- Me consultar?
- É, pedir orientação espiritual a algum dos guias.
- Não sei, será? - quando estou me decidindo se arrisco ou não, uma cigana se aproxima de mim e eu não tenho para onde correr.
Ela bebe um vinho calmamente, me analisando de baixo a cima. Acho que essa é a hora de eu saber se eles estão fingindo ou se isso é mesmo possível.
Ela começa a falar em chibi, que é nosso dialeto kalon e eu fico surpreso porque somente os kalon podem ter conhecimento da nossa língua. Me arrepio todo. Ícaro nos observa sem entender o que ela está falando. Ela diz algo sobre meu destino ser plantar uva e colher vinho e que por mais que eu tente escapar do destino, ele me encontrará onde eu estiver. Que assim como meu povo vivia antigamente, meu coração se tornou nômade mas que um dia ele iria encontrar um porto seguro. Depois me deixa beber um gole de vinho da sua taça e vai embora.
- Caraca, que foi isso? - Ícaro pergunta chocado.
Estou tão impressionado que minha única reação é apenas dar com os ombros.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Beba deste cálice (CIGANO/GAY)
RomanceRamon é cigano, pertence a etnia Calon e cresceu levando uma vida peregrina pelo Brasil até sua comunidade finalmente conseguir se instalar em terras mineiras. Ele se entende gay e terá que enfrentar a própria cultura para ser quem realmente é.