Vladimir
Os dias que eu fiquei internado no hospital me fizeram refletir sobre a vida, repensar meus atos e meus sentimentos. A lembrança daquela noite ainda está vívida em minha memória. Depois de descobrir que Ramon me deixou para curtir a vida longe dos costumes da nossa etnia, surtei, quebrei o celular de Iaskara e saí correndo desesperado, sem rumo certo. Montei em disparada e acabei caindo do cavalo. Acordei no hospital. Iaskara estava ao meu lado com um semblante bastante preocupado. A coitadinha beirava a insanidade. Primeiro ela me explicou que foi atrás de mim e me encontrou caído desacordado e que com a ajuda do meu pai, precisou me trazer para o pronto-socorro porque o meu caso parecia ser grave demais para se resolver no acampamento. Tive que passar por uma cirurgia porque quebrei a perna esquerda na queda e tive uma pequena contusão no pescoço, e que depois de vários exames na minha cabeça, ficou constatado que milagrosamente ela está intacta. Me dá uma angústia só de imaginar que eu poderia ter morrido naquela queda, entrado em coma ou ficado tetraplégico.
Suspiro fundo. Agora tenho que ficar de repouso com a perna cheia de pinos e depois terei que fazer fisioterapia, ou seja não faço a mínima ideia de quando poderei ter uma vida normal de novo. Por hora estou impossibilitado de trabalhar, minha família e eu teremos que ser sustentados pelo meu pai e não há vergonha maior para um homem da minha etnia do que não poder trazer o sustento para sua tenda.
Ramon. A culpa é toda dele. Foi ele que me seduziu e desgraçou com minha vida para sempre. Estou manchado, sujo para toda eternidade.
- Você está confortável? - Iaskara investiga entrando no nosso quarto e sentando na beirada da nossa cama. Sua barriga de grávida está cada vez maior.
- Estou sim. Obrigado por perguntar.
Ela sorri com amenidade, acariciando minha mão.
- Você está bem?
- Não, estou péssimo. Eu vou ser pai e me tornei um fracassado, um vexame perante toda a comunidade - desabafo.
- Você não é um inútil. Só está passando por uma fase difícil. As coisas vão melhorar. Você vai ver.
- Não tenho tanta certeza. Meu pai quer que a gente vá morar na tenda dele. Ele não quer sustentar duas tendas e não quer ser visto como um homem fraco que não dá conta da própria família.
- Mas nós vamos ficar muito apertados lá... Você sabe, tem minha mãe e nosso bebê logo vai nascer.
- Eu sei.
- Eu posso trabalhar fora, Vladimir.
- Ficou doida? Quer me envergonhar ainda mais?
- Mas eu não quero ir morar com meus sogros. Eu fiquei sabendo que a esposa do seu José está precisando de uma moça pra fazer a limpeza da fazenda. A outra pediu demissão.
- Eu não vou admitir que você assuma um papel que cabe à mim. Você está me ofendendo desse jeito, Iaskara. Me faz me sentir pior do eu já estou. Além do mais, como você mesma disse, vai dar a luz em breve e não dará conta de serviços pesados. Era pra você estar sendo tratada como uma rainha.
- Desculpa, Vlad. Te ofender não foi minha intenção. Eu só quero ajudar a passarmos por essa situação até você melhorar.
- Já está decidido. Vamos morar com meus pais e pronto. A vergonha de ser sustentado pelo meu pai será menor de a que ser pela minha esposa. Não suportaria o peso dessa imensa vergonha.
Iaskara suspira fundo. Ela sabe que não pode contestar seu marido.
- Está certo... Mas sabe... Às vezes eu fico pensando no meu irmão e em tudo o que ele dizia sobre seguirmos nosso próprio coração em detrimento das nossas tradições, caso contrário nunca seríamos felizes. Talvez ele esteja certo. Tem muita coisa com a qual eu não concordo...
- Nunca mais fale sobre o seu irmão na minha presença - a corto secamente. - Seu irmão não passa de um aventureiro, um imoral, um cafajeste que abandonou a própria família em nome de ambições fúteis. Ele não merece nosso respeito.
Iaskara engole seco. Acho que essa é a segunda vez depois daquela noite que ela me vê tão nervoso desse jeito. Mas é a verdade. Eu não quero saber do Ramon nunca mais. Ele morreu para mim. Vou esquecê-lo e seguir com minha vida. Tive que contar a verdade para ela porque ela estava achando que o problema era com ela.
- Tudo bem. Me desculpa mais uma vez. Não quero que fique tão alterado. Não é bom para sua recuperação.
- Você contou para sua mãe o que eu vi no seu celular?
- Não. Tenho vergonha de expor essa verdade que Ramon foi contaminado pelas porcarias dos gadjés. Mas ela ainda acha que seu acidente é culpa minha. Nossa relação não é mais a mesma desde aquela noite. Ela acha que eu sou responsável por seu ataque de fúria, que eu fiz algo muito sério que te aborreceu.
- Pois você deveria contar a verdade para ela. Não quero que ela continue pensando mal de você.
- Talvez eu tome coragem algum dia. Só sei que está sendo menos doloroso para mim ser crucificada sem merecer do que revelar para ela porque Ramon fugiu.
- Bom, eu não vou mais me meter nisso. Você que sabe.
- Unrum. Vlad, eu estive pensando e eu quero muito ter nosso bebê no hospital. Os dias que te fiz companhia lá, eu notei que eles tem uma ótima estrutura, e...
- Por que não quer ter nosso filho na comunidade com a dona Josefa?
- Não é que eu não queira. Eu sei que a dona Josefa é uma ótima parteira, é só que eu estou com medo do nosso filho não vir ao mundo de parto normal. Eu não quero que ele ou eu morram no parto caso ele não esteja virado. Eu quero estar no hospital se eu precisar fazer uma cesariana. Entende? Não quero que aconteça comigo o que já aconteceu com várias mulheres do nosso acampamento.
- Hum.
- Mamãe acha besteira, mas eu sei que você pensa diferente em muitas coisas... Também quero registrar nosso filho, fazer uma certidão de nascimento. Não quero que aconteça com ele o mesmo que aconteceu com você no hospital, caso um dia ele precise ir para lá. Foi difícil fazer sua ficha sem documentos. Tivemos que explicar que somos Kalons.
- Eu entendi, Iaskara. Quando chegar o momento do nosso filho nascer nós vamos fazer como você quer. Iremos pro hospital.
Iaskara abre um sorriso radiante e me beija animada e aliviada ao mesmo tempo.
- Eu sabia que podia contar com você! Que você me entenderia! É por isso que eu te amo tanto, Vlad!
- Eu também amo você... - retribuo mas com a certeza de que para mim ela nunca passará de uma companheira, a mãe dos meus filhos, por mais que eu tente amá-la e desejá-la como mulher.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Beba deste cálice (CIGANO/GAY)
RomanceRamon é cigano, pertence a etnia Calon e cresceu levando uma vida peregrina pelo Brasil até sua comunidade finalmente conseguir se instalar em terras mineiras. Ele se entende gay e terá que enfrentar a própria cultura para ser quem realmente é.