Me conte um conto

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Ano de 474

 - "Os fortes anseiam pela guerra, pois acreditam serem capazes de sobreviver". Felia repetiu as palavras que sua mãe acabara de ler em voz alta. – Isso é estupidez.

 Kalamis gargalhou. Depois baixou o livro de contos e se ajeitou em meio aos vários travesseiros enquanto admirava Felia que agora estava de pé sobre a cama andando para lá e para cá, lutando contra inimigos imaginários. Vez ou outra os longos fios de cabelo da garotinha cobriam-lhe o rosto e entre um soco desajeitado e outro ela os acomodava atrás das orelhas mesmo que por pouco tempo.

 - Sim, minha princesinha. Pessoas fortes também morrem durante a guerra.

 - Ainda bem que você é mais do que forte, então nunca vai morrer. – Falou com convicção. - É a mais poderosa de todas as Rainhas.

 A inocência de Felia sempre pegava Kalamis de surpresa.

 Erros cometidos em sua juventude e o ambiente dentro do castelo forçaram-na a ter uma compostura impecável e desconfiar de todos ao seu redor. Apenas quando estava em seu quarto sentia-se segura para baixar um pouco a guarda, o que tornavam sua filha e seu marido as únicas duas pessoas capazes de deixa-la desconcertada.

 O elogio fez a Rainha corar. Instintivamente seus olhos buscaram o quadro pendurado na parede do outro lado do quarto com a imagem de seus pais. Por um instante sua mente se perdeu em memórias reprimidas e quando voltou trouxe consigo um punhado de culpa.

 - Sabe, seu avô era muito forte também. Capaz de lutar de igual para igual com qualquer Cavaleiro de Ônix da sua época. – Disse com orgulho. Felia ouvia repleta de admiração. – E sua avó era uma estrategista sem par. Os dois juntos eram praticamente imbatíveis no campo de batalha.

 - Só que eles morreram durante uma guerra, não é mesmo? – Felia perguntou enquanto se aconchegava outra vez ao lado da mãe em meio aos travesseiros.

 Mais uma vez as palavras da garotinha atingiram Kalamis em cheio.

 - É... diferente. – O rosto de Kalamis enrubesceu novamente, mas desta vez por causa da raiva quase irrefreável que sentia.

 - Como pode ser diferente? – Os olhos cor de âmbar de Felia reviraram como ela sempre fazia quando pensava ter ouvido algo estupido. Nesse ponto as duas eram idênticas. Na verdade, não fosse o tom de pele amendoado e cabelo ondulado da garotinha, Kalamis poderia dizer que sua filha era sua perfeita versão em miniatura. - Guerra é guerra. – Concluiu e bufou para dar ênfase à suas palavras. – Como poderia ser diferente?

 Kalamis deu um longo suspiro tentando se acalmar enquanto pensava em uma resposta adequada para a filha. Sabia que Felia era inteligente e tinha muito orgulho disso. Era preciso muito esforço para dá-la uma resposta satisfatória e que não trouxesse mais perguntas complicadas á conversa.

 - Nem todo inimigo vive fora dos limites de Damora filha. - Foi tudo o que conseguiu dizer. – E já está tarde princesinha. É melhor você ir para o seu quarto.

 - Ah, não! Ainda nem chegamos nas melhores partes. – Felia insistiu relutante em parar a leitura por ali. - É agora que o rei Samen manda seu exercito cercar o acampamento inimigo que está na beira do rio Quiza. E depois eles marcham para o sul e destroem outro exercito que estava escondido em uma vila abandonada. Aí eles vão para a cidade de...

 - Princesa, por que toda a noite você me pede para ler esse livro se já a memorizou?

 Felia gargalhou. Kalamis sabia o motivo de a garota ter tanto interesse naquele livro. Diferente dos registros oficiais do Reino, aquele livro de contos citava uma pessoa a mais nas batalhas. Um jovem misterioso, com um poder de combate sobre-humano e que empunhava uma espada de aço negro indestrutível, capaz de penetrar qualquer armadura com facilidade.

 - Estou procurando por pistas. – Respondeu Felia tomando com cuidado o livro das mãos de Kalamis.

 - Pistas? - Kalamis fingiu desentendimento e a garota gargalhou outra vez. – Pistas do quê?

 - Da relíquia escondida no nosso Reino.

 A Rainha revirou os olhos. Queria não ter contado sobre esse conto bobo para Felia, mas a história da relíquia enterrada junto com o corpo do aliado misterioso do primeiro rei de Damora também foi sua historia preferida enquanto criança. Parte dela queria voltar para aquela época onde grandes batalhas eram apenas partes emocionantes de um conto, distante da realidade. Torcia para que Felia nunca precisasse viver o que ela viveu.

 - Certo, nesse caso vou te ajudar a procurar por essas pistas. Só que eu tenho uma condição. - Disse a Rainha fingindo seriedade. - Você não vai conseguir encontrar nenhuma pista se ficar lutando em cima da cama. Só vou continuar lendo se você me prometer que vai ficar deitada e em silencio para prestar atenção.

 Felia devolveu o livro para sua mãe, se ajeitou ainda mais em meio aos travesseiros, puxou a coberta até o pescoço e concordou com a cabeça.

 Alguns minutos depois a porta do quarto abre e Montero entra cansado, suspirando enquanto desfaz o nó de sua capa. Kalamis o repreende com um sussurro.

 - Não faça barulho.

 Ele olhou para a cama e entendeu a situação.

 - Ela dormiu aqui de novo? – Balançou a cabeça enquanto observava a filha deitada em uma posição nada saudável graças aos muitos travesseiros e ao pequeno livro que ela abraçava. Queria acorda-la e dizer que dormir assim não lhe faria bem, que já era hora de ela dormir no próprio quarto, mas a garotinha parecia tão contente e a vontade que ele não seria capaz. – Tudo bem, daqui a pouco eu a levo.

 Sua esposa assentiu.

 Enquanto seu marido se preparava para tomar banho, Kalamis acariciava o rostinho da filha. Aproveitando um dos raros momentos em que sentia fazer parte de uma família normal.

Deuses do AlémOnde histórias criam vida. Descubra agora