Memórias

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Dia 19 de Dezembro

         Pensei que estivesse ficando louco, mas realmente aconteceu. Papai e Anne também viram tudo o que ocorreu; o clarão que veio dos céus no meio da noite passada acompanhado por uma explosão violenta e um som hediondo não fora fruto da minha imaginação. Tudo indicava que o impacto havia sido em algum lugar de nossa propriedade. A princípio, o frio insuportável não nos permitiu ir até o local, mas hoje nós o fizemos durante a manhã. O rastro nos levou à uma cratera de cerca de um metro de diâmetro; a coisa vinda do céu parecia não ser tão grande, afinal.

         Assemelhava-se à uma rocha, e ainda emanava calor, apesar do frio que fizera na noite anterior – e do frio que persistiu durante todo o dia e servia como um lembrete do inverno rigoroso que estava por vir. O mais estranho é que, além do calor, a pedra emitia certas tonalidades de luz – e um som bizarro, como a respiração pesada de um velho – que não podiam ser obra deste mundo. Por um momento, pensei até que a coisa estivesse viva.

Dia 20 de Dezembro

         Papai se tornou obcecado pela pedra, e insiste para que eu o ajude a trazê-la para casa. Mesmo que eu o quisesse, não sei se isso seria possível para mim – ou para um grupo de dez homens, que seja - ela era pesada demais para que qualquer um pudesse movê-la; e hoje tenho a impressão de que a rocha criou raízes e se prendeu ao chão. Estou ficando louco? Ninguém além de mim, meu pai e minha irmã sabe da coisa que jaz num campo aberto não muito longe do casarão, e tenho certeza de que eles também sabem do que realmente se trata; tenho certeza de que eles sabem que a coisa vinda do espaço na verdade é um ser vivo dotado de um certo grau de consciência.

Dia 21 de Dezembro

         Por Deus! Todos – e isso inclui a mim – acordaram antes da alvorada com o estrondo terrível que veio do campo – da cratera. Ainda em meio ao escuro, fui até lá junto de meu pai - ambos munidos de lanternas - e me deparei diante do absurdo: a criatura vinda do espaço havia fugido, cavou um túnel grande o bastante para que coubesse um homem em pé durante o ato. O cheiro pútrido e nauseante que vinha da fissura era como um aviso para que não fôssemos em frente – um aviso que papai fez questão de ignorar, agora mais enfeitiçado do que nunca pela coisa; e era visível – e aterrorizante - a angústia que o velho sentia diante do sumiço da pedra viva. Anne permaneceu em casa – algo que eu também devia ter feito.

         A descida fora como uma ida ao mais vil dos infernos; quase desmaiei diante dos odores que pairavam no ar e dos sons que vinham dos corredores distantes sob o chão. Papai prosseguiu, impassível como o frio do inverno que se aproximava; ele estava muito à minha frente quando se viu diante de uma grande área vazia sob o solo, semelhante à uma caverna – e que talvez tenha sido entalhada pelo deslocamento da criatura. A luz que vinha das lanternas iluminava o local, mas não havia nada que pudesse ser visto pelos meus olhos – ou pelos olhos de meu pai - apesar dos sons indescritíveis que pude ouvir naquele momento. Foi quando o velho esbarrou no ar – esbarrou naquela coisa – que ele finalmente se viu diante da criatura, erguida em toda a sua malícia. Um grito seco ecoou pelo lugar, e papai desmaiou. Eu corri em sua direção, o agarrei, e o levei até a saída. A luz e o próprio ar pareciam ter mudado quando o toquei, e não ousei olhar para trás nem por um segundo sequer; pois era certo que a criatura olhava de volta para mim, e eu temia que agora pudesse vê-la, assim como meu pai.

         Do lado de fora da fissura os sons da criatura ainda ecoavam em minha cabeça e o dia parecia escuro, apesar do Sol já ter nascido. A luz que vinha do céu havia mudado, e agora estava distorcida, assim como as formas visíveis; por um momento, senti que a coisa estivesse dentro de mim, e que agora fosse parte de mim. Carreguei papai até onde minhas forças permitiram, mas não tardou até que o seu peso fosse demais para que eu suportasse, e ambos caímos sobre o chão gelado da manhã.

(Ilegível, creio que se refere ao dia 22 de dezembro)

         Tenho medo. Medo do escuro, mas agora, acima de tudo, tenho medo da luz. Posso vê-lo diante da claridade, posso senti-lo no ar; sua presença distorce as formas e distorce a luz. Por que Anne não o enxerga como eu o enxergo? E por que ela não pode ouvir minhas palavras – e por que nem eu mesmo as entendo mais? Por que as folhas deste velho diário parecem tão diferentes – e estranhas? Estou ficando surdo. Sinto que minha irmã quer falar comigo, mas não consigo entender as palavras que saem de sua boca. Tudo o que me resta são as folhas deste maldito diário e a presença constante da criatura em minha mente. Eu só espero que Anne um dia possa ler estas páginas (há algo mais escrito aqui, mas está ilegível). A coisa vinda do espaço ainda espreita nas entranhas e nos túneis sob o solo não muito longe daqui, e cresce sem que ninguém a veja. Papai não fora encontrado, e eu temo que ele esteja por aí, vagando, uma sombra do homem que um dia fora, assim como eu sou uma sombra do homem que um dia fui; e que Deus o proteja de um destino ainda pior.

(O resto do diário se resume a rabiscos e desenhos completamente indecifráveis).

O Vazio de DunkelOnde histórias criam vida. Descubra agora