A GAROA DA MANHÃ ENGROSSOU, e Magalhães foi pressionado a subir os degraus do bordel. Empurrou o portão de barras descascadas. E, no momento em que chegava à cena do crime, as suas narinas sofreram com um abrupto fedor.
— Uuuh! Por acaso alguém deixou o bueiro destampado?...
Para o azar do investigador, a origem do cheiro não era de um esgoto; e sim, de homens estirados no meio de um carpete cor-de-rosa, rodeados de vermelhidão. Ele mordeu os próprios lábios para disfarçar o espanto — porém, só lhe trouxe incômodo aos protuberantes dentes.
— Magalhães? — disse um narigudo perito estalando os dedos — Terra chamando Magalhães.Os estalos lhe resgataram a consciência. O investigador tirou os óculos-de-sol para encarar o colega.
— Ma' rapaz, cê veio para trabalhar. Não pra dormir.
— Perdão — rosnou Magalhães, detestando dar desculpinhas.
— Me permite falar do ocorrido ou terei que pegar no seu pé?
— Desembuche.
O perito deu uma risadinha, e começou a explicar com os olhos na prancheta: — Hoje temos seis mortos: todos de meia-idade. A dona daqui, a senhorita Heilane, disse ter os encontrado na madruga. Os seis morreram do mesmo jeito: com as suas colunas espinhais extraídas de forma...
Um fio de suor escorreu na testa dele.
— ... Brutal. Tenso, né?
Magalhães não respondeu. Ele despiu o volumoso sobretudo cor-pólvora e o pousou num sofazinho carmesim ao lado. E, para mostrar prontidão, ele içou as mangas da camisa.
— Qual o meu trabalho aqui, senhor? — perguntou.
— Um minuto. — O perito folheou as anotações na prancheta. — Você apenas irá... transportar os corpos para o caminhão do necrotério. Será fácil com esses seus brações aí.Depois de carregar o último cadáver, Magalhães contorceu suas castigadas costas, deixando um suspiro tomá-lo de alívio. Ao mergulhar a mão no bolso, ele notou estar melado de sangue até o pulso.
— Vá se lavar — recomendou o perito, sentado no sofá com uma papelada no colo. — Cê vai assustar a tua mulher assim.
Magalhães acenou com a cabeça enquanto alisava a careca. O investigador catou o sobretudo no apoio do sofá, e seguiu logo após a uma parede lilás, onde encontrou-se em um corredor. Estava diante do banheiro. Avançou. Aproximou os judiados dedos na maçaneta e...
... Inesperadamente ela saltou do respectivo lugar. O investigador tentou apanhá-la no ar, mas a maçaneta tilintou nos seus sapatos.
— Só me faltava essa! — exclamou ele. — Vou pagar por esse prejuízo, não!
— Olá?!
Uma voz afeminada gritou naquele corredor rosado. Magalhães, cheio de adrenalina, tentou encontrá-la: porém nada.
— Alguém aí fora? — a voz soou novamente, desta vez, de dentro do banheiro.
O investigador encostou a agigantada orelha na porta do banheiro para ouvir com clareza, e fez questão de responder: — Olá? Sou um dos federais. Vim apenas lavar as mãos, porém, a maçaneta caiu...
— É por isso que tô presa, então — murmurou a voz. — Ahn, moço, me ajude a sair? Eu sou a dona daqui. Tenho compromissos!
Magalhães se recordou das palavras do perito mais cedo. — É... é a senhorita Heilane?
— Exato, moço! Fui dar um retoque na maquiagem e acabei presa. Tem como ajudar?
— Claro, claro. Me diga onde tá a caixa de ferramentas que eu...
De repente, as lâmpadas no teto chuviscaram e tremeluziram freneticamente.
O coração de Magalhães passou a martelar com maior intensidade. Ele se afastou da porta, achando tudo muito suspeito...
Mas, longe dos olhos dele, uma mancha preta, oval e cheia de finas ondulações, se impregnou na vitrine da recepção. Depois outra, e outra, e mais outra... até que a chuva na rua desapareceu em um mar negro de impressões digitais.
Não acredito. Há um deles aqui, estremeceu Magalhães.
O perito já havia finalizado o trabalho, e estava de saída em direção à porta. Magalhães jamais o salvaria a tempo, lhe restando apenas berrar:
— Nããããããããão!!
Quando o perito voltava-se ao desesperado investigador, uma monstruosa sombra elevou-se atrás dele. Em menos de milésimos, a sombra o devorou por inteiro numa abocanhada só. No cômodo havia apenas o som molhado do sangue gotejando. Quando a sombra se satisfez de tanto mastigar, ela cuspiu os restos do que antes fora o perito.
Incrédulo, Magalhães encarou aquela mastodôntica figura. A crueldade na forma de uma baleia-jubarte negra, envolta de enferrujadas correntes...
— ... Um Autenderme — rosnou ele.
Autendermes — ou Autem — são personificações do pior lado de um ser anteriormente vivo. Os Autendermes não pensam, eles agem. Seguem o instinto primata de caçar e matar seres-vivos para estripá-los em busca de suas saborosas espinhas-dorsais. Magalhães, entre muitos, lutam para impedi-los de criar uma catástrofe maior.
No entanto, agora, um pedaço negro dessa catástrofe avançava louquinho para mordiscar as avantajadas costas do investigador que, por instinto, berrou para Heilane:
— Senhora, fique longe da porta!
— Moço... pra quê? O que tá rolando aí fora?
— Só obedeça!!
Passos ecoaram no banheiro, e ele pôde suspirar por um segundo — outra vida não precisava ser ceifada. Então, sem demora, ele sacou dos bolsos uma dupla de socos-inglês, e os juntou aos dedos.
O Autem havia finalmente alcançado-o. Mas, antes que agisse, ele recebeu um poderoso soco de boas-vindas. Aproveitando o atordoamento, Magalhães enfiou os punhos no — que seria — o estômago da criatura. O Autem mal gemia de dor, somente ficara bufando a cada soco recebido.
Magalhães cessou com o espancamento vendo que de nada adiantou. Seus dedos agora latejavam de dor graças a pressão acometida pelos socos-inglês.
O Autem contorceu o rosto ao teto e liberou um alucinante uivo. Ele irrompeu com força o investigador contra a parede. E então, para matar de uma vez, ele expeliu a gosma preta que formava-lhe na boca de Magalhães. O viscoso alcatrão rastejou-se garganta abaixo — sem contar a extrema agonia causada. O ar estava ficando escasso. A face do investigador passou a tingir-se de roxo... depois de azul...
— Ô, meu Deus — choramingou Heilane, sua voz parecendo deprimida de dentro do banheiro. — Por que tanta merda acontece comigo? Primeiro foi o aluguel. Depois as intermináveis goteiras. E... a morte da Tiffany.
Quando o nome reverberou, o Autem deixou de sufocar Magalhães para lançar-se à porta. O tremor do movimento chacoalhou as correntes que lhe envoltavam: algo que seriamente chamou a atenção de Heilane.
— Huh... Moço? Tudo bem aí? Conseguiu achar a caixa de ferramentas?
Transfigurando a cabeça do mamífero que outrora fora para uma medonha mulher, o Autenderme cruzou as frestas e adentrou o banheiro — deixando só o corpo de frente à porta. Depois, tudo que podia escutar era o ofegante choro de Heilane.
O pulmão de Magalhães inflava devagar — a gosma preta estava se desfazendo no organismo dele, permitindo com que respirasse normalmente. O investigador fez força para arrastar-se com ajuda dos braços.
Mas, inesperadamente...
Tu-tum.
Tu-tum.
Tu-tum.
Magalhães rasteou por baixo do Autem em busca destes batimentos: estavam saindo do peito da criatura, especificamente na espinha-dorsal. O líquido amniótico naquilo resplandecia ouro, e pulsava igual a um coração de boi. A razão daquilo acontecer era de, quando um Autenderme se descontrolava sentimentalmente, ele acarretava em expor seu ponto fraco.
Preciso alcançá-lo, pensou Magalhães, continuando a luta para se locomover. Preciso acabar com isso de uma vez. Ele se apoiou na parede, reerguendo-se com dificuldade. Estava na altura do órgão pulsante; podia até vê-lo cintilar. É agora ou nunca!
De imediato, Magalhães afundou o punho Autenderme a dentro. Ele agarrou a espinha-dorsal — grudenta e vibrante.
O Autem estava ocupado demais com Heilane, que chorava cada vez mais alto.
Magalhães vociferava para arrecadar total potência dos músculos para extrair a fonte de poder da criatura. Estava já sem fôlego, transpirando em excesso. Mas, continuou a arriscar pelo bem da mulher e de sua própria vida.
Ele dobrou abruptamente o pulso, e...
Crék!
Um estralo trouxe para si a ofuscada espinha-dorsal. Ele a ergueu triunfante bem no momento em que, na fenda de seus dedos, o órgão esfarelhou como folhas. O Autem logo tombou de costas, arvorando uma cinzenta névoa.
Quando tudo parecia ter acabado, a porta do banheiro inventara de despencar no corredor — por pouco errando o investigador. Lá dentro, acuada sobre a privada, estava a dona do bordel: uma moça barbada, de pernas cabeludas e peruca grisalha. Ela estava em choque. Mal parava de gaguejar.
— Ah, um traveco. Deveria ter imaginado — murmurou Magalhães, se lembrando de um antigo rolê.
Do nada, um sussurro chegou às suas enormes orelhas. Um sussurro feminino, doce, e alegre:
— Sou eternamente grata por me libertar...
Era Tiffany — a parte pura dela.
— ... Finalmente descansarei.
— Quem te matou? — perguntou Magalhães, absorvendo tudo de cabeça baixa.
— Heilane. Ela quis me prender. Me fazer de escrava neste inferno. Eu havia ingressado em uma faculdade, poderia ser alguém nesta cidade. Alguém além de uma garota impura.
A testa do investigador enrugou, dando-lhe uma expressão sombria.
— Você... a perdoa? Se sente preparada em esquecer tudo para adormecer em paz.
Esse tipo de pergunta sempre lhe doía.
— Não — respondeu Tiffany. — Eu a amaldiçoo por ter me dado o peso do rancor alheio, por ter me dado a inveja de meros luxos! Esses malditos sentimentos levaram-me a lugares piores do que o inferno!
Magalhães aguardou algo mais, porém, aquela doce e energética voz se calou. Ele, em respeito da alma, gesticulou a cruz que Cristo carregou, e, baixinho, rezou.
— Pai nosso que estás no céu...Fim.
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SUPORTANDO O LUXO DE MORRER
Mystery / Thriller[CONTO] EM UM REQUINTADO BORDEL, um investigador se depara com a cena de um crime nada convencional. Quando ele segue ao banheiro, descobre ter alguém preso lá dentro. Daí, ocorre vários eventos anormais e mortais. Para defender esta pessoa, o inves...