Coração Ouvinte

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Flávia esperou o doutor das galáxias sair da sala pra chorar, em pé, na beirada da maca onde Paula descansava. Se sentia cansada, como se carregasse o mundo nas costas, entendia o que o Clube dos 27 passava e ainda nem tinha chegado lá. Encarou a Paula, desolada na cama e percebeu que nem mesmo a mulher mais independente e empoderada que ela conhecia tinha segurado a barra, porque uma garota roubada como ela conseguiria?

O pai tinha voltado à jogatina e isso lembrava a infância difícil quando ele perdeu a padaria. Por mais que tentasse fugir daquela casa, dos problemas, era como se eles agarrassem ela de dentro pra fora, ela se sentia doente. Apesar da sensibilidade da Odete, a relação das duas era ruim.

Ela não tinha mais emprego na Terrare, não tinha amigos; Murilo e Vandinha a odiavam nessa altura do campeonato. A única irmã que achou que teria a tratou mal e com razão. Sentia tanta falta da Ingrid porque era como se pela primeira vez ela tivesse alguém ao lado dela pra carregar o fardo. E que fardo...

Era um fardo pro Neném e família, tinha sido um fardo até pro Gabriel por não se permitir gostar dele como ele gostava dela. O Doutor das Galáxias nem olhava pra ela e, pior! Tinha acabado de chamar ela de Rose. Enquanto chorava silenciosamente, se perguntou porque a única figura de mãe que tinha estava nesse estado e não acreditava nela.

Enquanto Paula acordava e falava com o Neném, Flávia se esgueirou pela clínica e foi procurar o doutor caloteiro em vão. Sabia que ele devia estar ocupado com outros pacientes e tão envergonhado por tê-la chamado de Rose que sumiria. Ela riu enquanto as lágrimas rolavam por se perguntar porque tinha ido procurar ele na sala dele, pra começo de conversa.

Foi passando os dedos pelos móveis, como sempre fazia pra sentir a presença do Guilherme. Queria que as coisas dela fossem dele, mas ela nada tinha. Parou perto do coração anatômico de plástico que tinha derrubado e, limpando as lágrimas o segurou com as duas mãos:

"Você tá mortinho da Silva, hein? Como um de nós vai ficar...Em menos de um ano."

Encarando as veias do coração, ela se perguntou qual daquelas era a tal da válvula mitral. O coração era pesado e frio, mas parecia reconfortante ter algo nas mãos sem sentir que fosse um fardo ou que estava fazendo algo errado.

"Sabe eu...Eu vou me sentir idiota por estar falando com um coração de mentira, mas acho que nessa fase da minha vida tô topando qualquer coisa...Não tem ninguém pra me ouvir, os corações são todos de pedra...Fechados pra mim." Flávia sentiu a voz embargar no silêncio do escritório escuro e sóbrio, como o dono dele era.

"Eu não sei o que fiz de errado, coração. Eu tento arrumar minha vida e aí vem uma bomba e me derruba. Eu me levanto e acontece outra roubada. Foi a mala, os cremes, meu pai, a Odete...O Roni e a Cora em cima de mim. Todo mundo que eu gosto é magoado por mim, a Ingrid, o Murilo, a Venda...Até o Gabriel. Eu devo ser o mesmo problema."

Apertando o coração com as mãos ela sentiu os dedos ficarem vermelhos, colocou ele próximo ao peito. No mesmo momento, Guilherme a viu pela janela do escritório e entrou silenciosamente, segurando o jaleco nos braços. Parado próximo a coluna da porta, ele a escutou, escondido;

"Talvez eu nunca...Eu nunca devesse ter nascido, né? Nem minha mãe me queria" Ela soltou uma risada entredentes; "Se nem ela me queria então talvez fosse isso mesmo, tô sobrando no mundo."

Sem entender o porquê, o coração de Guilherme apertou em seu peito. A garota roubada continuava a falar, virada de lado na cadeira com o objeto nas mãos;

"Sabe, coração...Um de nós do acidente de avião vai morrer em menos de um ano e, com tudo isso acontecendo, depois do tiro, de ser presa, da rejeição...Eu não me importaria que fosse eu. Não tenho nada a perder. A Paula tem a empresa, o Neném tem a carreira, até o doutor tem que salvar o casamento falido dele. Não tem espaço pra mim."

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