capítulo 1 - Lhe devo essa.

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CAPÍTULO I

Manter a concentração estava sendo um desafio naquela noite. Pois desde que assumi o trabalho de um amigo, sentia que tudo estava dando errado, afinal quem iria conseguir trabalhar se os clientes não paravam de conversar entre si. Por mais que soubesse que isso era normal,  não conseguia mesmo continuar. Já tinha dez anos que trabalhava no mesmo local um pequeno prédio no centro com três andares. O estúdio ficava no terceiro andar e podia ser acessado por uma escada na lateral do prédio ou pelo elevador. Era um lugar bem bacana.

Mesmo sabendo que amava minha profissão não queria  estar naquela sala uma hora dessa, mas não podia deixar o amigo na mão, sabia que ele tinha saído mais cedo para levar a mulher grávida para o hospital, no entanto me sentia muito incomodada. Olhei em volta e tentei me concentrar novamente. Minha sala era pequena assim como as outras sete que tinham naquele andar. Há dez anos atrás vim para essa cidade e passei a pegar o aluguel da sala, assim como os outros tatuadores faziam. Com o passar do tempo o lugar ganhou certa fama e devido a isso sempre tinha clientes, ou seja, sempre tinha dinheiro. E como vivo sozinha, não tinha motivo para gastar. Então realmente não precisava estar aguentando aquelas garotas falarem de namoro ou de corpos musculosos. Eu odiava tudo relacionado ao namoro, tinha traumas disso, mesmo nunca tendo tido um relacionamento. Irônico né.
Mas não podia fazer nada a não ser suspirar e continuar a fazer outro risco no braço do rapaz na minha frente. Ele era bonito,tinha cabelos pretos e era forte. As meninas que o acompanhavam tinham cabelos longos e coloridos, usavam roupas justas e apertadas. Enquanto ela usava sua velha calça preta e a blusa mais larga do seu guarda roupa.Não queria nada apertando no meu corpo, já tenho vinte oito anos e sabe, não queria mostrar  a pequena pancinha que tinha.
— Você está bem? —Ouviu a voz rouca do rapaz e parei de o tatuar.
— Estou sim. —Disse de forma simples e o viu sorrir. Sabia que ele não se incomodava com as falas das meninas, mas talvez pensou que ela sim. Isso era gentil de sua parte. Depois de dispensar seus pensamentos voltou a tatuar o rapaz, ele tinha pedido o desenho de uma cobra e algumas flores do lado. Não tinha experiência em desenhar cobras então começou a fazer a flores, pois pretendia deixar seu colega de trabalho responsável pelo restante, então não pegaria o dinheiro do trabalho e deixaria com o mesmo.
Tinha uma hora que estava na mesa posição, mas pelo menos estava acabando seu trabalho e ela já tinha conseguido combinar com o rapaz que o resto do desenho iria ser feito em outra seção e por sorte ele aceitou, mesmo não parecendo muito feliz.
— A próxima seção não vai ser cobrada, sinto muito pelo inconveniente. — Declarou quando viu todos saírem de sua pequena sala. Continuou sentada no banquinho e olhou para o espelho que ficava no canto esquerdo da sala, ele tinha uma moldura preta que combinava com as paredes cinzas repletas de desenhos aleatórios. Voltando o pensamento para si mesma, reparou que seu cabelo estava mais bagunçado que nunca. Seus cachos que agora estão curtos eram mais pretos que seus olhos. Sua pele negra, ou morena como costumam dizer, estava apática. Não só pelo cansaço, mas também pela briga que teve mais cedo com sua gerente. A louca queria que ela abrigasse o sobrinho em sua casa e por mais que sentisse pena da história do rapaz não queria dividir sua zona pessoal com ninguém. Ela não queria confiar em outra pessoa.
— Kai? — Foi tirada dos seus pensamentos ao ouvir a voz de Antonela e olhou para a porta. Ela era a mais velha do estúdio  e a dona daquele prédio. Antonela sempre a ajudava em tudo que precisava e além disso, sua gerente foi a única que a  acolheu quando precisou de uma casa. —Suspirou fundo, talvez estava sendo muito ingrata ao recusar o pedido da mais velha.
— Oi… — Depois que respondeu viu a mesma andar e se sentar no banco ao lado da porta. — Ela tinha longos cabelos ruivos e um semblante preocupado. Nela já estava no auge dos seus quarenta e cinco anos, mas se comportava como uma adolescente de vinte poucos anos.
— Obrigada por ter cobrido o Ben. A esposa dele teve algumas contrações, mas não vai dar à luz hoje. — Disse suspirando aliviada. Antonela não tinha filhos. Segundo ela, a dor do parto não era para ela.
Sabia que a mais velha queria uma resposta e eu não sabia bem o que falar. Quando tive que sair de casa desesperada, um amigo me indicou para a vaga de tatuadora nessa cidade. Antonela me acolheu e me deixou ficar em sua casa até ter o dinheiro para pagar o aluguel do estúdio e uma casa para morar. Mas fora isso não pagava alimentação ou transporte. Após relembrar tudo isso, realmente notou que estava sendo egoísta.
— Sobre a conversa que tivemos mais cedo, sei que gosta de manter sua vida privada e não contar muito do seu passado… Me desculpe por pedir que ele ficasse na sua casa…
— Eu… Não olhei o seu ponto de vista e sei que sempre quer o bem de todos, então se ele não for uma pessoa barulhenta e gostar de uma casa escura, ele pode ir para minha casa. — Resmungou vendo o sorriso da mais velha se formando.
—Jura? — Ela veio abraçar, mas parou quando notou o que ia fazer. Ela sabia o quanto eu odiava contato físico, mal sabia como suportava ser tatuadora a tanto tempo.
— Sim, ele pode ficar lá até conseguir se acertar, assim como eu fiquei na sua casa. Mas se ele fizer algo que me irrite ele vai embora. — Nela riu. Sabia que minhas palavras eram sérias. Afinal nunca fui uma pessoa muito bem humorada.
— Ele é uma pessoa muito boa sei que vão se tornar amigos. — Apenas neguei a com a cabeça, não queria forçar uma amizade. — Ele está na cozinha, pode ir lá o conhecer. —Exclamou entusiasmada, ao ponto de quase deixar o óculos redondo um pouco maior que seu rosto cair no chão, naquele momento ele estava quase saltando para fora, ela realmente estava feliz.
— Antonela? — Ela parou de sorrir e me olhou.
— Os pais dele, não vão tentar o achar? Sei lá pedir desculpa? — Perguntei curiosa.
— Eu não sei Kaila, eles o expulsaram de casa sem nem pensar duas vezes. Minha irmã sabe onde moro, por isso não quero que ele fique lá, ela tentou o agredir. Eles ficaram cegos pela religião. — Declarou passando as mãos no rosto. Não queria mais tocar no assunto, já que até ela preferia não comentar com mais ninguém.
— Complicado… — Disse baixo. O clima acabou ficando um pouco pesado, então ela foi para fora da sala e eu apenas juntei minhas coisas em uma mochila preta surrada e tranquei meu ambiente de trabalho.
Vai ser estranho ter alguém a mais em casa, depois de anos sozinha.Pensei, seguindo o corredor até a pequena cozinha que tinha após o balcão da recepção. O andar tinha uma cor verde militar, cada tatuador decora sua sala  da forma que quiser, mas fora isso Antonela que cuida de tudo. Como passamos a maior parte do dia trabalhando, ela fez questão de fazer um canto para cada um tomar um café ou esquentar uma marmita. Fui lá poucas vezes nesses anos, pois não sei cozinhar então sempre sai para comer fora.
Assim que cheguei na porta, Mabel passou por mim correndo. Ela era a mais nova, tinha vinte anos e cabelos  castanhos bem curtos. Sabia que o motivo da pressa era para não perder o ônibus para casa.
— Tchau Kai! —Ela gritou sumindo pelo corredor.
— Até mais.
— Oh você está aí! —Dessa vez foi Marcos que falou, ele tem trinta e dois anos e como posso dizer, ele é bem padrão. Loiro, olho verde, alto e bonito? Não sei dizer, o sorriso dele é tão animado que cega meus olhos. Credo. —Quer uma carona?
— Não, você nunca vai descobrir onde moro. — Sorri vitoriosa com a cara de tacho dele. — As pessoas daqui tem um costume de tentar descobrir algo além da minha idade e cor favorita. Sei que já fizeram um bolão ano passado para saber se a tatuagem que tenho nas costas é de corvo ou não, quem ganhou foi a Mabel, já que me viu trocando de blusa no banheiro. Bom era um corvo sim e por mais que tenha achado meio inconveniente, não reclamei. Às vezes é bom não ser chata.
— Um dia eu vou saber tudo. — Disse confiante após passar pela porta e se despedir.
— No dia que descobrir, pode ter certeza que vou me mudar. — Dessa vez ouvi uma gargalhada vindo da minha frente. Não conhecia aquela voz, então julguei ser do sobrinho da Nela. Olhei para ele e me surpreendi, podia jurar que os cabelos dele estavam pegando fogo. Ele era branco assim como Antonela e tinha cabelos ruivos, porém mais escuros. Seu rosto tinha muitas sardas e ele usava um moletom roxo bem claro e uma calça jeans azul. Tinha brincos coloridos na orelha e parecia ser uma pessoa bem diferente de mim. Muito diferente mesmo! E uma coisa que não pude evitar de reparar era na altura dele, eu sou maior que ele.
— Vai vendo! —Voltei minha atenção para Marcos e me despedi do mesmo. Olhei para os lados e não vi Nela. Talvez ela esteja ocupada. Coloquei a mochila na mesa e sentei-me em uma cadeira de frente para a pia. Sentia ele me olhando, mas não sabia muito bem o que dizer, nunca sei bem o que dizer. Quando pensei em falar algo o ouvi.
— Meu nome é Iori, sou o sobrinho da Antonela. — Ele estava visivelmente tímido.
— Meu nome é Kaila, mas me chamam de Kai.— Assim que ele ouviu meu nome, vi sua expressão mudar e percebi que talvez  ele estivesse esperando que fosse um menino e não uma mulher.
— Ah… Minha tia falou muito bem de você. —Senti que ele estava mentindo.
— Bom, ela me falou que precisava de um lugar para ficar. Se sairmos agora conseguimos pegar o metrô para irmos para minha casa. — Ele concordou e pegou uma mochila azul bebê cheia de enfeites. Sem notar olhei para minha e a achei sem graça, mas já tinha passado dessa fase de enfeitar tudo em minha volta. O observei de novo e o vi empurrar uma mala grande. Como notei
que o mesmo estava com dificuldade, peguei minha mochila e fui pegar sua mala.
— Espere ela está…— Peguei a mala com facilidade e levei para o corredor. —Pesada…—Ouvi ele sussurrar, mas seguia andando até achar Antonela na recepção.
—Ah vejo que se conheceram. — Disse ao me ver com a mala na mão. —  Eu já vou fechar tudo e levo vocês.— Exclamou desligando algumas coisas.
— Não precisa, vamos de metrô.
— Mas estou de carro Kai. — Disse olhando para trás de mim. — Tudo bem você ir de metrô com a kai, Iori. — Revirei os olhos, ele não é uma criança.
— Tudo bem Tia, não liga mais de ficar em local lotado. — Olhei para os dois e pensei que talvez Iori teria pânico de ficar em locais muito lotados. Então me afastei puxando a mala e peguei o celular com a outra mão para chamar um táxi. Quando percebi já estava descendo as escadas e havia deixado os dois para trás.
Observei ao meu redor e todas as luzes estavam acesas, a cidade não era ruim. Sempre achei o bairro que morava tranquilo, mas mesmo assim não queria contar para os amigos que morava no bairro das rosas em Nova Esperança. Sentia que eles iriam rir dela. Já que o bairro parecia ter saído de um conto de fadas e não tinha nada haver com seu estilo obscuro.
Depois de vagar por inúmeros pensamentos ouviu passos atrás de si e viu Antonela e Iori rindo, os dois eram bem parecidos e pareciam se dar bem.
— Bom, são 10h e 20m. Ainda vão pegar o metrô? — Nela perguntou preocupada.
— Chamei um táxi. — Disse apontando para o carro que estacionou ao meu lado. — é mais rápido. — Eles se encararam e se despediram.
— Cuida dele Kai.
— Ele que se cuide. — Disse acenando para ela e entrando no carro. — O vi meio em choque, talvez tenha se ofendido pelo que falei. — Foi mal. Não gosto de deixar ela achar que manda em mim. — Resmunguei e comecei a olhar o celular e o deixei viajando olhando a vista.

Até o próximo NatalOnde histórias criam vida. Descubra agora