Não tenho certeza de como as escritas do tal sujeito acabaram ali sob o velho casarão, uma vez que as páginas do livro indicavam que mais – muito mais, na verdade – do que dois séculos haviam se passado desde a escrita até o dia de hoje. Penso que talvez tenha sido algo feito pela irmã, uma vez que a perda do pai e a súbita insanidade que se abateu sobre o irmão não lhe fizessem bem algum – e dessas memórias ela não ousaria guardar nenhum vestígio em sua casa; ou talvez tudo tenha sido fruto de mero acaso. No fim, isso não importa. O relato que sobreviveu ao passar das eras veio até mim, independente do percurso. Reuni um pequeno grupo de homens – acompanhados pela jovem Hannah Williams, uma das mais promissoras estudantes da Universidade - composto por um punhado de meus melhores alunos e dos empregados mais confiáveis do estrangeiro, que a esta altura não fazia qualquer esforço para disfarçar o interesse que tinha no caso; o plano fora arquitetado à noite por volta da segunda semana de junho, e seria executado na semana seguinte - e por mais insano que pudesse soar, uma expedição ao Vazio de Dunkel havia sido concebida.
Durante os sete dias que se passaram fui acometido por pensamentos e sonhos estranhos. As aulas ministradas ao dia eram interrompidas por náuseas inexplicáveis e dores de cabeça. As noites eram acompanhadas por pesadelos terríveis onde a presença constante de uma silhueta desconhecida era visível, junto de um fenômeno inexplicável – afinal, o que fazia com que a própria luz assumisse aquelas formas bizarras quase como se tivesse vontade própria? Na manhã, após o despertar, os questionamentos surgiam. Talvez o contato com as páginas daquele velho e maldito diário seja a causa daqueles sonhos hediondos. Ou talvez seja algo que ainda desconheço - estremeci diante das possibilidades. De certo era algo relacionado ao Vazio; e numa mistura de ânsia e pavor, percebi que enfim havia se passado uma semana e o dia da expedição havia chegado.
A senhorita Williams ficou encarregada de registrar os acontecimentos da expedição. Quando o grupo enfim se viu diante do Vazio, houve uma mudança no semblante de todos ali, e o ânimo e a curiosidade deram lugar a um pavor inexplicável; e por tudo que há de mais sagrado, eu juro que os segredos desta terra serão revelados, senão hoje, nos próximos dias. A expedição prosseguiu a passos lentos pelos campos decrépitos e sem vida que se estendiam até onde a vista alcançava e tomavam toda a parte leste de Dunkel. O avanço se deu por quase duas horas quando finalmente encontramos uma pequena fissura no chão – e que tudo indicava ser a mesma dos registros do homem louco os quais foram encontrados sob o velho casarão. Após uma breve pausa no percurso, a descida se iniciou.
O ar puro da superfície logo se foi e deu lugar ao cheiro pútrido que tomava conta dos túneis sob o chão. A náusea e a repulsa não foram suficientes para deter o nosso avanço, embora eu mesmo tivesse cogitado desistir naquele momento. A descida continuou, e logo nós nos vimos diante do grande salão sob o chão onde o pai teria encontrado a criatura vinda do espaço. O terror parecia tangível, apesar de eu ter providenciado que dois dos empregados viessem armados em caso de uma emergência do tipo. Felizmente, nada ocorreu. O salão estava vazio, de fato. Mas havia algo que fora deixado de fora dos registros de outrora. Afinal, quem teria construído a escadaria – se é que posso chamá-la assim, uma vez que nos degraus mal cabiam os pés de um homem adulto – que levava até os confins do mundo?
Fora uma longa descida, e o cheiro de antes parecia ainda mais intenso agora nas profundezas. Os arredores tinham um aspecto bastante rudimentar, e pareciam ter sido esculpidos pelas mãos de um único homem – ou de algo ainda desconhecido. Tardou para que chegássemos ao ponto mais baixo do lugar, diante do mais absoluto escuro. As lanternas que trouxemos eram a única coisa que nos permitia enxergar lá embaixo. Estranhamente, a escadaria rudimentar dava à uma série de túneis escavados com certa perícia, e havia um túnel principal e outras dezenas de túneis adjacentes menores. Decidimos prosseguir pelo caminho central até o momento em que um ruído quase inaudível fora detectado, vindo de uma área mais distante.
Seguimos o som – que parecia o de unhas a arranhar uma superfície rochosa – até o ponto que o emitia. A expedição se viu diante de uma silhueta humana que arranhava as paredes. O corpo era magro, quase como o de uma criança. Foi quando a coisa se virou que Hannah deixou cair os registros que carregava consigo e soltou um grito agudo – não a culpo. Nenhum dos homens que se encontravam ali naquele instante foi capaz de manter a postura diante de tal visão, e o horror e a repulsa haviam se tornado, enfim, tangíveis. Deus! A coisa era um homem – ou fora, um dia. O corpo meio decomposto a colocava num estado hediondo entre a vida e a morte, e o cheiro... Era como se o inferno andasse sobre a terra naquele instante. Mas o pior ainda estava por vir. A criatura demonstrou que ainda resguardava certa consciência, e balbuciou algo que me estremecer. A voz rouca quase inaudível pronunciou o nome "Anne" quando se viu diante da senhorita Williams. Foi nesse momento em que um dos empregados disparou contra a coisa e pôs fim ao seu tormento tão duradouro. Por Deus... Tenho quase certeza de que a criatura era o pai do tal sujeito dos registros – ou talvez o próprio.
Mais adiante nos túneis encontramos uma fissura enorme no chão, a qual parecia se estender até o fim do mundo. Mãos humanas não poderiam ter sido capazes de entalhar nas rochas algo de tal proporção. Ali se encerravam os túneis e as bifurcações; ali, naquele abismo negro de outrora. A expedição preparava o retorno à superfície, e eu decidi permanecer ali diante da fenda por alguns instantes derradeiros. Foi quando notei que algo olhava das profundezas de volta para mim, e estremeci. Não me restou qualquer vestígio de dúvida de que aquilo fosse a criatura que veio do espaço; e que Deus me ajude, pois eu posso vê-la...
Que queimem as páginas do velho diário! E que nenhum ser humano jamais pise novamente sobre as terras amaldiçoadas do Vazio de Dunkel!
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O Vazio de Dunkel
Horror"No lado leste do Condado de Dunkel existe uma enorme área inexplicavelmente vazia, onde nem mesmo as ervas daninhas crescem, e até os animais não ousam pôr os pés sobre o chão seco e sem vida tão vasto e vazio como um oceano de dimensões infinitas...