Passarinho

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Paris, 13 de maio de 2003.

Querida Milla,

Você sempre me falou que todo mundo tinha uma vocação... Eu sempre achei inspirador o quanto seus olhos brilhavam quando você discursava sobre algo que gostava, pareciam dois cometas castanhos gigantes reluzindo em plena luz e totalmente prontos para se chocarem com meu mundo, o mudando totalmente, roubando meu fôlego para sempre, exatamente como você, a única pessoa no mundo que fazia cada amanhecer valer a pena. Você costumava me dizer que ninguém poderia ser totalmente feliz e completo sem achar sua vocação, essas palavras se repetiram na minha mente cerca de um milhão de vezes desde que as escutei, até que eu finalmente entendi.

Quando eu dancei pela primeira vez, não havia coreografia perfeitamente ensaiada, não havia horas de ensaio sem pausa, não havia a busca incessante pelo corpo mais leve possível, não havia cobrança, pressão, tristeza, medo ou vazio. Só havia a música e eu, enquanto eu girava em meus pés de deixava de ser carne e osso e me tornava em energia sonora, meu corpo se tornava um instrumento utilizado como extensão de cada nota musical, eu fechava meus olhos e me entregava aquele sentimento, era paixão, era amor, eu me sentia completa, livre... Quando eu dancei pela primeira vez, eu voei, Milla, e depois que você aprende a voar é impossível voltar a viver no chão. A dança era meu dom, a música era minha paixão, e o amor pela minha vocação me dava asas, você era meu céu, Milla, mas existem coisas que eu nunca consegui expressar.

Nunca vou esquecer o dia em que nos conhecemos, você era uma criança tão estranha, fazia todas as aulas possíveis e estava sempre buscando tudo, você tentou dançar, tentou aprender a tocar dez instrumentos musicais diferentes, tentou pintar, tentou a matemática, o português.

"Estou buscando meu propósito, Ana."

Você diz essas palavras com frequência, cheguei a pensar que talvez esse fosse seu propósito, sabe? A sede insaciável por saber sempre mais, o jeito como você sempre tentava tornar tudo melhor, céus! Você era adorável!

Você entrou pela porta da academia de dança com um sorriso brilhante no rosto, era interessante e espetacular, a maioria das meninas ali era como eu, com aquele brilho meio morto nos olhos de quem havia visto sua paixão se tornar uma obrigação, e em meio a nossas posturas perfeitas havia a sombra de ombros curvados pela pressão constante. Tinha mais de trinta meninas naquela turma e ainda assim... Você olhou para mim. Quais são as chances? Dentre trinta meninas bem mais incríveis... Você escolheu ficar ao meu lado.

Antes de ser a dançarina principal, antes das competições e de ser vista como uma garota prodígio da dança, antes da perfeição montada, dos treinos de mais de oito horas de duração e de todas as lágrimas amargas, eu dançava por que fazia minha vida fazer sentido, eu dançava por que me fazia esquecer todos os problemas da minha vida. Eu sentava no chão do meu quarto e pegava o rádio rosa que vovó havia me dado de presente, colocava na primeira estação de rádio que estivesse tocando alguma música, meu eu de quatro anos fechava os olhos e respirava fundo, deixando que a música penetrasse cada átomo de seu corpo pequeno, então eu sentia a melodia invadindo meu coração e enchendo meu peito de calor, meus membros vibravam e aquela garotinha se movia sem perceber, tentando ser cada nota musical que compunha aquela melodia, quando seus pés saiam do chão, ela voava tão alto que podia tocar cada estrela do céu. Depois aquele brilho se foi, e tudo que restou foi uma casca vazia e sem vida, que treinava doze horas por dia e fazia cada movimento com perfeição, mas sem calor. E eu nunca pensei que meu mundo pudesse se tornar tão frio.

Me apaixonar por você foi como dançar pela primeira vez. Mas eu tinha dezesseis anos dessa vez, não havia nada ensaiado e nem perfeito, éramos amigas desde os doze, então sem que nenhuma de nós esperássemos... Aconteceu. Um dia você segurou minha mão e sorriu como de costume e algo em mim havia mudado, por que percebi que não queria que você soltasse nunca mais, meu coração acelerou e o calor invadiu meu peito, você encostou a cabeça no meu ombro e eu paralisei, por que pela primeira vez em muitos anos o calor em meu peito estava me fazendo flutuar.

Algo mudou em você também, eu pude notar pelo toques mais frequentes, a maneira sutil como você olhava nos meus olhos por tempo demais e ficava me encarando até que as borboletas em meu estomago ficassem loucas, o jeito como sua cabeça sempre encontrava caminho até meu ombro e nossas coreografias se tornavam cada vez mais intimas. Meu rosto ficava vermelho todas as vezes e você fazia questão de soltar um risinho sacana. 

Nunca esquecerei aquela tarde de abril, você me levou para tomar sorvete de menta como sempre fazíamos quando estava muito calor, eu estava exausta de minha nova rotina de ensaio e quase cochilando em pé, minha dieta nova era tão rígida que eu me sentia quase como um zumbi, o açúcar em meu sangue sempre tão baixo que a letargia já fazia parte de mim, você passou um dos braços pela minha cintura e me puxou para bem perto, meu coração acelerou de uma maneira sobrenatural e eu arregalei os olhos, e quando você me beijou eu voei de novo, como não fazia há muito tempo. Você devolveu minhas asas, Mila. Te amar me fez me sentir viva. 

Dizem que o primeiro amor e o último são inesquecíveis e que por mais que você tenha milhares de amores, você sempre carregará o primeiro no peito e o último para a vida, você foi meu primeiro e último amor, e eu sei que não fui nenhum dos dois para você, mas espero que depois de todo esse tempo, ainda exista um lugarzinho em seu coração para mim. Sempre foi você, que amei, que eu precisei, que eu quis cuidar, por que você fazia cada dia valer a pena, você me entendia, entendia até mesmo as coisas mais estranhas sobre mim. Tipo o quanto eu rejeitava qualquer avanço sexual por que não sentia nenhum desejo ou conforto em coisas assim, e me respeitava mesmo que o nosso relacionamento se baseasse em beijos, e diferente de todas as outras pessoas, você sempre valorizou mais a mim que o meu corpo. 

Eu comprei um livro outro dia, tinha seu nome na capa. Acho que você finalmente achou seu dom, por que eu li cada palavra e gravei cada vírgula, seu livro é incrível, Milla, exatamente como você. 

Se você leu isso até aqui, você deve estar olhando as palavras no papel com aquele olhar de julgamento se perguntando o por que de tudo isso depois de quase doze anos. Quer dizer, você está casada e esperando o segundo filho, então por que estou te escrevendo depois de tudo que eu fiz? Mila, quando eu estava lendo aquele livro, eu percebi muitas coisas. Percebi que o tempo passou muito rápido, e que nós duas crescemos e mudamos demais, só que de alguma maneira continuamos as mesmas, percebi que a vida não vai me esperar criar coragem e que o tempo vai continuar passando, percebi que nunca pedi perdão por todas as coisas que aconteceram conosco, percebi que sequer disse adeus antes de te afastar da minha vida, e percebi o quanto eu sinto sua falta e o quanto te amo, depois de todo esse tempo você ainda é meu porto seguro.  

Quero te pedir perdão, por todas as coisas que eu não disse. Por não ter enfrentado meus pais e não ter me assumido, me perdoe por não ter coragem o suficiente para ser alguém diferente do que todos esperavam que eu fosse, mesmo que isso fosse me fazer feliz de verdade. Me perdoa por tudo, por ter não ter tido coragem o suficiente e por te deixar ir...

Meu melhor amigo me disse que é bem provável que a gente se encontre em outras vidas, então espero que nessas outras vidas eu tenha mais coragem e possa fazer melhor. 

Isso não é uma carta de suicídio, mas... Agora, sentada no chão do meu banheiro enquanto escrevo para a única pessoa que me importa, eu não consigo me imaginar acordando amanhã e fazendo tudo isso de novo, sabe? Por que toda esse espetáculo que minha vida se tornou já não faz sentido. 

Eu prometo te encontrar na próxima, Mila. Eu prometo que dessa vez terei coragem, não deixarei que cortem minhas asas de novo, eu prometo que voaremos juntas. Eu prometo que te amo e te amarei em todas as vidas possíveis.  Eu nunca disse Adeus, mas dessa vez estou dizendo. 

Adeus, Mila.

Eu amo você.

Do seu eterno tordo azul, Ana de Castilho Andrade.

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