Perda e culpa

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Eu costumava gostar de dias chuvosos

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Eu costumava gostar de dias chuvosos.
Mas agora, eu só consigo pensar que se isso não tivesse acontecido, talvez você poderia estar aqui. Seus amigos ainda te veriam no dia seguinte. Suas bochechas inflariam e formariam pequenas rugas abaixo dos seus olhos quando sorrisse.
Você poderia abraçar seu futuro mais uma vez.
Me pergunto se você sabia que iria morrer ou se tinha esperança enquanto escalava o ônibus.
Eu nem mesmo te conheço, mas queria tanto que estivesse aqui. Você parecia tão doce e adorável. Me pergunto quais foram seus últimos pensamentos.
Ultimamente só consigo pensar em você. Queria ter sido sua amiga, queria ter conhecido seus sonhos e suas tristezas.
Queria ter-lhe ajudado.
Sinto-me tão egoísta por ter estado segura, tão estável, enquanto você lutava por sua vida.
Mal posso acreditar que tive a audácia de dormir. Em uma cama quente e confortável. Meus pisca-piscas estavam ligados e me mantendo na minha bolha de ignorância. Penso que desejava que aquilo tudo acabasse rápido. Queria sua família e u abraço confortável.
Como você poderia saber que aquele seria seu último dia?
E como poderia saber que, de uma hora para outra, não te restaria nada?
Sinto-me tão egoísta.
Respirar se tornou tão valioso, mas não posso deixar de pensar que não sou merecedora.
Minha vida continua a mesma. Tenho minha família e uma casa; consigo me sentar e escrever. Posso acompanhar tudo que você viveu. Observei cada segundo da sua luta.
Numa ação sádica, mostram-no vivo. No segundo seguinte te perdi para a correnteza.
Como a odeio. Como me odeio.
Deixei um universo inteiro escorregar por entre meus dedos.
Sempre concordei com o dizer "somos poeiras cósmicas". Me odeio por isso, agora. Você era o universo. Tão vasto, em expansão. Tão complexo.
Não te ouvi gritar. Nunca ouvi sua voz.
Apenas cravo seu nome na minha memória, na esperança de anestesiar e fazer doer ao mesmo tempo. Lembrar-me do quão inútil fui.

Se tivesse ouvido sua voz, permaneceria comigo por tanto tempo.

Penso nas coisas que você desejou ter feito diferente, se soubesse o que viria.
Que merda de existência cruel te exclui e me permite viver?
Você só estava tentando ir para casa.
Posso sentir seu desespero, e fico pensando que se fôssemos amigos, poderíamos ter impedido sua morte. Andaríamos pela rua como se não houvesse nada mais forte, contando piadas e rindo de forma alta. Compraríamos besteiras para comer e então você estaria atrasado.
"Eu sinto muito, não queria que perdesse o ônibus"
E então, "tudo bem, ainda é cedo".
E realmente era muito cedo. Você nos deixou cedo demais.
E se você não estivesse naquele ônibus, eu ainda te teria aqui.
Poderia viver por mais um dia. Por mais outros finitos, porém longos, dias.
Construiria seu futuro. A chuva te tirou de mim.
Eu a odeio por isso.
Estou tentando de tudo para fazer parar de doer. Tento ler, mas me sinto egoísta por isso também.
Viver é egoísmo quando somos iguais e apenas um de nós está aqui.

Imagino que era do tipo que gostava de ler. Minha imaginação permite a sua silhueta em meu quarto, tentando encontrar algum livro que te chama atenção. Escolheria aquele sobre um atentado nórdico, porque clássicos e romances já não são o suficiente para te estimular.
Gostaria de ter te conhecido para saber quem você era. Como era.
O que mais dói é saber que isso nunca vai acontecer, porque você morreu. Não posso fantasiar para sempre, mas o sentimento de culpa parece querer ficar.
Poderia ter sido eu lá.

E por que você?
Tenho certeza de que a chuva me apavora, agora. É o terror de uma cidade inteira. Me conforta saber que há inocentes que não conseguem compreender o caos.
E me destrói que tenha vivido o caos.
Sou apenas uma espectadora, te assisti morrer.
Assisti os 51 segundos mais assustadores da sua vida; eu assisti você nos deixar como grãos de areia numa ventania.
E em um instante, você estava abaixo d'água.
Quem sabe o que aconteceu com você lá? Será que sabia nadar? Ou ficou inconsciente? Seria tudo tão igualmente doloroso.
Seus últimos pensamentos são meus únicos.
Qual foi o propósito daquele dia que destruiu tudo? Por que você e não qualquer outro?
Você foi tão efêmero.
Estava lá, tentando, enquanto seus espectadores filmavam sua agonia e sua morte.
Mais água e mais gritos.
E então não estava mais lá, não havia mais entretenimento.
Te amarei até esquecer.
E a cada gota me lembrarei.

Sigo na espera e constante busca por conforto. Espero uma catarse. Gostaria de acordar e ter sido tudo um pesadelo.
Queria caminhar para a escola e te encontrar no caminho. Queria te entregar uma margarida selvagem, já murcha pela espera e a paciência para encontrar você. E diria "olá, estranho. Aproveite o dia"
Me tornaria confidente, e seria seu apoio.
Nunca acontecerá.

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