Cap. I

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 Disseram-lhe que crescer era algo fácil, que o tempo passaria pelo seu corpo e nada sentiria. Mas ela sentiu picadas dentro do seu ser como nunca antes sentira, sentiu o sangue a descer pelo seu corpo sem sequer se ter magoado, as suas mãos cobertas de dores inigualáveis e ela ali embrulhada em lágrimas. Malditas lágrimas elas que vinham do nada, que desciam pelo seu rosto até alcançarem o chão. Doía tanto sentir o seu útero a arder sem ter isso escolhido, "matem-me" pensava por vezes, "acabem com a minha vida" por outras, sem pensar que a isso se habituaria. Habituou-se a conviver com o corpo, até que não mais. Um dia aquele sangue que escorreu veio da dor, as lágrimas escorriam com mais força, porém desta vez os gritos não era ouvidos tapados por uma pele estranha, queria fugir, morrer, desparecer para sempre como se o seu mundo não a quisesse mais dentro dele. Contudo, só sentia aquele corpo invasivo dentro de si e a sua alma a sucumbir lentamente.

O sol brilhava pelos vidros das janelas do pequeno apartamento de Ariana sem qualquer dó como se lhe pertencessem o chão de madeira meio desgastado e as paredes brancas com algumas suculentas penduradas posicionadas milimetricamente em suportes de diferentes tamanhos e formas, os copos com água brilhavam como diamantes lapidados expostos nas vitrines das grandes joalherias do centro da cidade. Tinha se mudado há um ano para Paris, a "Cidade do Amor", e ainda não se habituara a visão do seu apartamento, à montanha de escadas que subia e descia todos os dias, por vezes arrependia-se de ter alugado o apartamento no sétimo andar mas, sempre que olhava pela janela, sempre que via todos os grande prédios e todas as pequenas pessoas que passavam correndo entre passeios e carros, o arrependimento transformava-se em devoção. 

Já era tarde, tinha que se apressar para o trabalho na Vogue se o seu objetivo fosse não ser despedida. Vestiu algo confortável e saiu numa corrida desenfreada pelas escadas dando bom dia a vizinhos que atravessavam o caminho da jovem. Finalmente chegou, depois de curvas e contracurvas entre gentes de diferentes formas e figuras, ao grande edifício da revista mundialmente renomada. Era uma sorte e um privilégio trabalhar em tal lugar. Desde nova sonhava com o cargo, com o país, e depois de tudo o que passou aquele olhar belo e refrescante acalmavam a inquieta mente de Ariana. 

- Bom dia Ariana - cumprimenta Pamela, amiga e colega de trabalho. Ambas trabalhavam juntas na mesma divisão desde a chegada de Ariana ao edifício. 

- Bom dia Pamela - retribui Ariana com um largo sorriso no rosto - sei que estou atrasada mas imploro-te que não contes a Madame Bellerose,  ela matar-me-ia sem qualquer piedade no olhar. - ambas caiem na gargalhada chamando a atenção de metade dos colegas que resmungam indignados - Desculpem. - sussurra sentando-se no seu lugar e voltando-se para o computador à sua frente. A secretaria estava coberta de papeis de tal forma que Ariana não via a sua real cor. 

- Madame Bellerose disse que temos até quinta feira para entregar a nova edição e encarregou-  -te de escrever sobre o desfile da Moschino que ocorreu esta semana em Milão. 

- Não podia estar em piores mão. -reclama- Não vi o desfile, estive demasiado ocupada. - apoia o queixo sobre a mão. 

- Imagino o que será. - sorri. 

- Não compartilho dos teus pensamentos Pamela, sabes que não é o que pensas. 

- Eu sei, e lamento mas tens algo para entregar e visto que vão ser longas pesquisas seria melhor que começasses agora. - Pamela caminha para longe deixando Ariana sozinha com os seus pensamentos vidrada na tela preta do computador ainda por ligar. Como conseguiria escrever profundamente sobre um desfile se ainda era terça? Considerando que os desfiles em Milão ainda estavam a decorrer seria impossível manter-se atualizada mas a edição teria que sair mesmo que fosse pouca a informação. 

Começou a escrever, e escreveu até parar de ver os ponteiros do relógio. O sol ficava cada vez mais fraco depois da hora de almoço e os dedos, já doridos, escorregavam entre os teclados obrigando-se a continuar. Tudo o que via eram letras, várias letras em linha, sobrepostas, curvas, em fila, prestes a se atirar pela janela do prédio de desespero. Eram finalmente horas de regressar a casa. Recolheu as suas coisas e começou a abandonar o escritório sem olhar para trás, até ouvir a voz animada de Pamela que a chamava euforicamente. 

- Onde ias com tanta pressa? - pergunta após alcançar a jovem.

- Para casa. 

- É terça feira Ariana, tínhamos combinado de ir ao bar com as meninas, lembras-te?

- Sinceramente já me tinha esquecido disso de tão cansada que estou. - caminham as duas pelos corredores do edifício. 

- Mais um motivo para vires. - responde Pamela animada. Ariana simplesmente concorda com a amiga que salta de felicidade durante o resto do caminho. 

O trajeto para o Dirty Dick foi suficiente para as jovens colocarem a conversa em dia, porém curso considerando a localização. A noite corria entre copos e risos desarmados de quatro jovens com capacidade de dominar Paris com a sua graça. Eva e Dália tinham acabado de voltar de Milão após ficarem um pouco para a semana da moda. A verdade é que tinham saído a meio do evento mas a revista resolvera substituir a equipa por novos integrantes que chegavam hoje à cidade. Sem qualquer duvida de que tinham feito um bom trabalho ambas descansavam nos copos de cocktails na maioria pagos por homens que engraçavam com a beleza das jovens 

- Milão está um caos nesta altura. - diz Eva - Carros por todo o lado como e pessoas loucas à espera das celebridades no tapete vermelho. 

- A verdade é que os desfiles deste ano foram um evento maior que o esperado, e acredito que seja por isso que a Vogue nos mandou de volta a Paris. - continua Dália bebendo a sua bebida calmamente. - Isso e porque faltam pessoas no edifício. 

- Verdade que tem estado vazio. - começa Pamela - Nunca pensai num movimento tão grande nesta altura do ano, mas a verdade é que a moda é sempre um dos maiores eventos do planeta que movimenta bilhões de dólares. - Todas concordaram com a jovem e continuavam o enrolar da conversa até Ariana prender o seu olhar nos novos clientes que entravam. Nunca os tinha visto naquele bar, talvez fossem clientes mais noturnos mas pelas horas que ficava sentada naquela cadeira reconheceria os rostos mesmo fora do ambiente. Não, não sabia quem eram. 

Desde nova Ariana sempre foi muito detalhista e atenta, conhecia todas as pessoas frequentadoras habituais dos sítios que frequentava regularmente e nunca lhe falhava quando uma cara nova aprecia, porém Paris não é assim tão grande por isso na maioria do tempo reconhecia as pessoas de outros espaços. Aqueles eram diferentes. Altos, dois deles tinham cabelo liso não muito longo mas o suficiente para cair sobre o rosto do ligeiramente mais baixo, já o terceiro tinha cabelo encaracolado e era, sem dúvida, o mais alto do grupo. Porte elegante e olhares penetrantes observavam o lugar. O mais baixo, cujo o cabelo caia sobre o rosto, divertia--se a na tentativa de seduzir as jovens do bar com o sorriso branco e encantador; o médio apenas vibrava ao som da música, porém o mais alto estava sério, rosto marcante e sisudo apavorava todos os olhares curiosos com o seu jeito de poucos amigos. Esse chamou a atenção por alguma razão que ainda não descobrira. 

  




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⏰ Última atualização: Feb 28, 2022 ⏰

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