Mary Elizabeth Nambridge
Londres, Mayfair nº 83
20 de Abril de 1935
Rose,
Quase quarenta anos depois, resolvi escrever algo. Não foi por falta de oportunidade ou vontade. Na verdade, gastei uma quantidade exorbitante de papéis durante todos esses anos que tentei te escrever, mas nunca consegui formar uma única palavra.
Entretanto, elas surgiram hoje. Acabei de voltar do enterro da minha neta, Amelie. Ela morreu de tuberculose aos vinte e um anos. Era feliz e iria se casar. Richard a amava verdadeiramente e se jogou no caixão durante o funeral. Ninguém teve a coragem de tirá-lo de lá. Depois disso, resolvi te escrever, porque a dor é imensa e o meu arrependimento também. Imaginei- te naquele caixão e eu era quem me jogava gritando para não me deixar. Da morte ninguém pode ser salvo, mas posso mudar algo que ainda existe, mesmo que nunca mais vá existir um nós, eu preciso escrever isso, preciso te dizer que eu errei. Errei por ter ido embora e, acredite, eu me machuquei da mesma forma como te machuquei.
Rose, minha memória já não é mais a mesma, porém consigo me lembrar de todos os detalhes daquela época. Consigo sentir a liberdade que tive ao morar sozinha em Paris. Longe da minha família, dos compromissos, dos padrões sociais e de um casamento arranjado. Eu era apenas Mary. Uma garota de vinte anos indo estudar arte na cidade das luzes.
Eu tinha tantos planos para minha estadia no outro lado do canal, mas todos se foram quando te conheci, Rose. Destruíste meus planos, e sabe muito bem que eu odeio quando alguém faz isso, e deveria te odiar por isso, mas eu gostei. Eu gostei muito de ter tudo destruído. Lembra-se? Eu estava vestida em trajes masculinos para não ser descoberta e havia bebido um pouco além da conta. Só queria uma inspiração para o meu quadro. Então, eu te vi. A principal dançarina de cancan. Ondas e ondas de cabelo castanho flutuavam no ar enquanto giravas com um belo vestido rodado vermelho. Eu me lembro do seu olhar feroz e dos seus lábios vermelhos, eu me lembro de sentir o mundo inteiro dentro de mim e de esquecer onde eu estava ou quem eu era.
Alors, com a coragem que a bebida havia me dado, andei até onde estavas depois da apresentação. Depois disso, tudo havia mudado. Ainda não sei como sentiu o mesmo por mim. Eras tão bonita, e ainda és, corajosa, ainda és, forte, ainda és, determinada, ainda és, e incrível, ainda és, que nunca pensei que fosse se interessar por mim.
Achava que o amor não havia sido feito para pessoas como eu. Então, apenas aceitei o meu destino como esposa de um homem que não escolhi, morando em uma casa que nunca quis. Eu via o amor nos olhares dos casais que dançavam várias músicas durantes as festas, nos livros de romance, nos poemas que minha tutora me fazia ler, em todas as vezes que via um artista pintando um quadro de alguém.
E tudo mudou quando te conheci. Tu, Rose, me destes tudo que os poetas diziam que o amor oferecia de uma forma real e verdadeira. Eu tive medo de me entregar e de fugir ao mesmo tempo. Como eu poderia sentir tudo isso por uma mulher quando sempre me disseram que tais sentimentos deveriam ser direcionados ao sexo oposto? E por que é tão diferente se eu direcioná-los a uma mulher? Porque o que senti, e ainda sinto, foi tão verdadeiro e real como qualquer outro amor entre um homem e uma mulher. Tu me mostrastes um mundo novo, me mostrastes o amor em sua forma pura e honesta e, por um instante, não me importei que isso não fosse durar para sempre, pois o que tinha naquele momento era o suficiente para me fazer viver por mais cinquenta anos em uma eterna primavera.
Eu te amei e ainda te amo. Sentir isso é tão fácil quanto sentir paz ao observar o pôr do sol. Cada fibra do meu corpo te ama de uma maneira que nunca mais sentirei novamente, de uma maneira que jamais senti por outro alguém. Se existem almas gêmeas, sei que é a minha. Dói imaginar que pensas o contrário, Rose. O meu amor por tu é tão forte quanto um sobrevivente da Grande Guerra, quanto um pássaro alçando voo pela primeira vez, quanto uma criança dando seus primeiros passos.
Rose, deves achar que fui uma mentirosa. Posso ter sido uma covarde, mas jamais menti. Fui verdadeira em cada segundo que passamos juntas e meu coração sempre esteve em suas mãos. Eu me entreguei de corpo e alma a ti e não me arrependo. Ainda sinto a culpa de ter te abandonado, porém sei que fiz o certo para nós duas. O que seria de nós se escolhêssemos viver daquela forma?
Eu fui embora, porque não podia ficar. Meu pai havia me mandado voltar para Londres por conta do casamento. Se eu tivesse escolhido ficar, teria sido deserdada. Rose, poderíamos ter sido presas, internadas em um manicômio ou marginalizadas. Tu tinhas tantos sonhos. Querias ser atriz, brilhar nos palcos e naquela invenção dos Lumière. Querias muito mais do que a vida estava te dando e eu não podia tirar isso de ti. Acreditei que, um dia, acordarias e perceberias que eu havia estragado tudo, e passarias a me odiar. Então, te dei um motivo para me odiar, mas ainda com a chance de alcançar o que queria.
Por isso, juntei minhas coisas, escrevi aquele maldito bilhete e peguei o primeiro navio para a Inglaterra. Eu não tive coragem de me despedir. Não tive coragem de falar que estava com medo. Antes, acreditava que tinha feito isso por ti, mas, agora, acho que fiz mais por mim mesma. Eu não queria perder o que tinha, a minha família, a minha vida confortável. Eu não queria sofrer as consequências de mostrar o meu verdadeiro eu para o mundo. Tive medo, logo, fugi e abri mão daquela que mais amei, porque eu fui uma covarde, mas jamais pense que fui embora por não te amar.
Bem, sei que conseguiu realizar seus sonhos. Acompanhei cada conquista. Assisti a todas as peças e a todos os filmes. Desenhei vários retratos seus e jamais disse seu nome a alguém. Tudo isso tranquilizou meu coração, Rose. Saber que seguistes em frente e lutastes pelo que queria. E acho que passei a te amar mais por isso.
Não espero uma resposta. Não espero que deixes de me desprezar. Só escrevi, porque precisamos disso. Eu tenho que me explicar e tu tens que saber. A morte nos muda, sei que sabe disso. Richard não pode mais enviar cartas a Amelie, mas eu posso enviar-te, pois seria insuportável não te falar tudo isso. Essas palavras ficaram presas por tanto tempo, mas hoje tive a coragem de colocá-las para fora.
Rose, eu a amo. O exterior importa, porém não tanto. Eu me apaixonei por sua alma, ela brilha, irradia uma luz branca e prazerosa. Não desejo nada menos que amor e felicidade para ti. Com todo o meu amor, para sempre. Adeus.
Rose Émellie Allaire
Rua Saint Dominique nº 34- Paris FR
Palavras: 1216
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Para Rose com amor
Romance2º lugar no Desafio Meu Primeiro Amor Décadas mais tarde, Mary finalmente resolve escrever para seu primeiro e único amor, Rose.