Ele a chamava de Scar.
Não era um nome lisonjeiro, por mais que os homens teimassem em repeti-lo com tom de reverência que sugeria o contrário. Ela era o que era, mas cada um do povo bretão tinha sua própria forma de descrevê-la. Em alguns pontos mais longínquos, suas histórias chegaram emaranhadas de tal forma à de seu Rei que não havia forma real de distingui-los como indivíduos — tão unidos que a vitória de um parecia depender diretamente do outro. Em alguns lugares, contavam suas histórias retratando-a como um homem de grande força; em outros, havia se tornado um objeto de tanto poder que mesmo os lordes de terras distantes queriam tê-la para si.
Nenhuma das lendas estava realmente longe da verdade.
Havia, no entanto, a versão que um velho guerreiro contava, sem jamais alterar os detalhes, independente de quantas vezes tivesse que repeti-la. Uma versão tão crua que parecia despida de qualquer encantamento típico das lendas de guerra: a de uma mulher que enfrentou duzentos homens levando nas mãos apenas o sangue daqueles que derrotava.
A linguagem foi a Grande Criação. Antes, nada havia. Nem Deus. Nem homem. Nem ela.
As existências receberam signos e apenas então ela foi capaz de ter consciência de si mesma. Existia há muito tempo, a mais tempo do que podia se lembrar, mas só com a linguagem tivera consciência de que existia. Antes disso, não era diferente de qualquer outra coisa. Esse era o poder do pensamento: distinguir, dar significado, dar possibilidades.
Como um ser de existência perene, ter consciência de si mesma foi um processo incompleto. Não tinha um par com o qual se comparar, apenas os homens, os quais ela parecia compreender melhor do que eles mesmos - a despeito de si mesma que pouco compreendia.
Os humanos passaram pelo mesmo processo de autoconhecimento que todas as criaturas dotadas de ciência têm que enfrentar. Olhavam o próximo, tomavam consciência deles próprios, enxergavam no outro as qualidades que acreditavam possuir e o admiravam. E o imitavam. E desejavam as mesmas coisas. E se odiavam.
Daí nascia a violência; o sacrifício.
Violência e sacrifício são duas coisas constantes na história da humanidade. As duas, unidas, dividiram o tempo deles em dois. Não havia como escapar delas, afinal. Os humanos ainda enfrentavam seu autoconhecimento, ainda estavam amadurecendo como espécie.
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Scar
Fantasy"Ela era apenas um amontoado de carne imortal sem alma. Não sabia quem era. Depois de tomar consciência de si mesma, parecia muito perto de se perder para sempre. Só sabia que existia por ser capaz de pensar. Mas por quanto tempo conseguiria fugir d...