Foi da noite do dia 30 de outubro para a madrugada de 31 de outubro que algo aconteceu ao jovem Charles Wood, o filho caçula de Francis e Dahlia Wood. Gritos hediondos e uma miríade de vozes sinistras ecoaram do quarto do rapaz. Era possível ver através dos vidros, olhando pelo lado de fora da casa, os clarões que partiam do interior do quarto, quase como se uma tempestade irrompesse acompanhada de ventos violentos que faziam bater as janelas. Francis correu até o quarto do filho e o encontrou caído no chão, quase inconsciente. Charles logo recuperou os sentidos, e permaneceu impassível diante do semblante furioso do pai, que já não suportava mais as coisas que vinham acontecendo à família. A indiferença do filho diante da situação era inquietante no começo, mas logo se tornou aterrorizante. Afinal, o que se passava na cabeça do garoto? Depois do ocorrido, Charles se deitou em sua cama e dormiu, como se nada tivesse acontecido. Houve paz, enfim.
Charles agiu de forma estranha durante todo o dia. Todos sabiam dos hábitos reclusos do rapaz, mas nada algo do tipo havia sido visto antes. O garoto permanecia quieto diante dos irmãos e dos pais, e não os respondia quando perguntas lhe eram feitas. Charles praticamente não respondia a qualquer estímulo que o atingisse; e única coisa que chamava sua atenção era o tique taque do relógio na parede de seu quarto. Havia um interesse notório do rapaz em saber das horas do dia, e os olhares inquietos que o jovem destinava à janela de seu quarto, numa tentativa de presenciar as posições do Sol, eram uma prova disso; ouvidos atentos podiam ouvir as únicas palavras balbuciadas pelo garoto durante o dia, especialmente quando o fitava da janela de seu quarto – Monte Stern. Durante o entardecer – na "hora dourada" – Charles foi acometido por um frenesi quando teve a saída de casa negada pela mãe e acabou agredindo-a com uma força que certamente não podia ser coisa deste mundo. Brenda ficou em casa para cuidar dos ferimentos de Dahlia – que bateu violentamente a cabeça no chão – enquanto seu irmão gêmeo Peter partiu – contrariando a própria razão - ao encalço do irmão caçula agora completamente insano. Charles prosseguiu, e correu em direção ao Monte Stern, acompanhado do irmão, que o seguia a certa distância, temeroso a respeito da natureza imprevisível do garoto.
Diante das escadas que levavam até o topo do Monte, Peter estremeceu diante da imagem de um ritual bizarro que havia sido realizado ali. Havia um corpo escondido entre as árvores, dilacerado pelo que parecia ter sido uma fera sem precedentes. A cabeça estava ausente, e o cheiro que emanava do lugar era quase tão hediondo quando o cheiro horrível que veio do quarto de Charles há algumas noites, quando algo – certamente um defunto – caminhou pelo quarto do rapaz nem que tenha sido apenas por um breve instante. Peter não pôde conter a repulsa que sentia naquele momento, e vomitou ali mesmo. Mas seu irmão ainda seguia pelas escadas, e deixá-lo ir talvez trouxesse consequências ainda mais devastadoras – e assim, Peter recobrou os sentidos e prosseguiu pela escadaria, perseguindo o irmão agora tão distante – em todos os sentidos que a palavra pudesse assumir. Esgueirando-se pelos arbustos e pelas árvores, foi somente durante a chegada da noite que Peter se viu diante de seu irmão e de outras três figuras sinistras que vestiam roupas que lhes cobriam dos pés à cabeça – de certo, eram os estrangeiros de que Venicci tomou conhecimento – sem que eles estivessem cientes de sua presença ali. O grasnar inquietante dos corvos que voavam pelo local era quase como um presságio do que estava por vir – e dos rituais horrendos que se dariam ali, na véspera dos Dia de Todos os Santos, quando finalmente aconteceria o alinhamento planetário tão aguardado por Charles e por seus companheiros.
Charles deu início a um encantamento perverso, usando de uma voz rouca e quase gutural que não lhe pertencia. Os sujeitos que lhe faziam companhia logo trataram de acompanhá-lo no cântico hediondo, as vozes aterrorizantes idênticas as que foram ouvidas na mansão dos Wood, e cujas palavras não pertenciam a nenhuma língua da qual se tivesse conhecimento. Um dos lacaios trouxe até Charles um pequeno pote cheio de cinzas, enquanto um outro trouxe até o rapaz uma cesta que carregava algo em seu interior. O rapaz fez questão de atirar para o alto as cinzas enquanto prosseguia com o ritual, e despejou o conteúdo da cesta pelas escadarias do Monte. Peter percebeu que se tratava da cabeça de Venicci que rolava pelos degraus, e sentiu náuseas e quase desmaiou naquele instante, tamanha era sua repulsa. O ritual prosseguiu até culminar num ponto crítico; e no instante em que Charles encerrou os dizeres que pronunciava, uma tempestade violenta teve início, obscurecendo o céu e fazendo com que todos os cães de Willowfield latissem freneticamente em direção aos céus. Os sujeitos se despiram de suas roupas, e sua verdadeira natureza veio à tona; pois aquela mistura hedionda e bizarra de humanoide e crustáceo não podia ser um ser vivo deste mundo, deste planeta, desta galáxia... Quiçá deste universo. O odor nauseante e pútrido que emanava das criaturas era quase como o de um cadáver.
A última coisa da qual Peter se lembra é de ter visto o irmão partir junto das criaturas que o acompanhavam, carregado através do espaço e do tempo por uma sombra inominável que se contorcia nos céus – como se uma força consciente e completamente maligna os arrastasse até os limites da realidade, às beiras com o absurdo. Houve um clarão, certamente visível por toda a cidade; e Peter desmaiou, acordando somente na manhã seguinte. Peter retornou para casa na manhã seguinte, aterrorizado e faminto. Não tinha qualquer resposta para as perguntas que lhe foram feitas. Simplesmente disse que Charles havia morrido ao se atirar do Monte Stern. Talvez fosse o melhor a ser feito. As lágrimas e o choro de Francis e Dahlia, agora recuperada das agressões do filho, ecoaram pela casa. Brenda permaneceu em silêncio, num estado de choque. Mas Peter precisava de esclarecimento acerca das coisas que havia visto e ouvido, e vasculhou o quarto do irmão sumido em busca de respostas para os ocorridos dos últimos dias. Foram necessárias duas semanas para que Peter pudesse compreender o que de fato havia acontecido.
Charles registrou seus breves encontros com as criaturas que se davam no seu quarto. As tempestades que pareciam irromper no interior da casa eram portais que ligavam Charles ao mundo daquelas coisas, mas que só podiam ser mantidos por breves períodos – o que justificou os encontros reais que ocorreram depois da passagem definitiva das criaturas a este mundo. Charles parecia interessado em trazer algo até aqui, e então partir para outra dimensão. Para isso, seria necessário obter o conhecimento de um daqueles seres bizarros; e Charles assim o fez, a partir dos restos mortais de uma das criaturas que morreu durante a travessia dimensional. Talvez isso justifique o interesse repentino do jovem pela necromancia e explique suas súbitas mudanças de personalidade às noites. Não era Charles, de fato – mas sim alguma coisa que havia possuído seu corpo. Suas experiências não tiveram o resultado ideal; e a consciência de Charles se desfez, e seu corpo deu lugar à uma nova mente, o que certamente explica o ocorrido do dia 31 de outubro, quando Charles perdeu de vez o controle. Mas se aquele não era Charles, meu Deus, onde ele estará agora?
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O Desaparecimento de Charles Wood
Horror"O jovem Charles sempre fora o mais estranho dos irmãos Wood. Seus pais não sabiam ao certo o que motivava os estranhos gostos e hábitos do filho, que guardava um interesse e um apreço notáveis, sobretudo, às coisas antigas do mundo e aos mistérios...