Capítulo 1

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Ela cogita por aproximadamente dois segundos não atender a ligação.

"Pronto", suspira. "Ilana?"

"Eu não tinha certeza se você ia atender."

"Uhum", seguido de uma risada surpresa, "essa não cola nem com a Maria".

Como se ainda duvidando se tomou a decisão certa fazendo essa ligação, solta a frase em um só respiro "Gabriela, ela tá com febre alta. A Thaís teve uma emergência e não veio trabalhar hoje. Eu não quero ser daquelas mães que leva a criança no hospital por qualquer coisinha, mas ela está assim há horas".

"Vou praí assim que meu plantão acabar – em uns 20 minutos – tá bem?"

"Não sei nem o que falar pra te agradecer. Estamos te esperando". Hesitante, pergunta "Você ainda tem a chave?".


Com o estômago pesado de preocupação com a pequena, a sensação intensificada agora com a pergunta, Gabriela assente com a cabeça. Ela sabe que Ilana não pode ver, mas também sabe que ambas entendem que a resposta não havia de ser outra.

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Ela sempre achou que a arte se acostumar com as perdas não é assim tão difícil de ser dominada, tantas coisas são feitas para serem perdidas. Já tinha perdido coisas, pessoas, e a perda delas na verdade não é assim tão dolorosa.

Mas ela achava que Ilana seria sua grande história de amor, e que essa ela não perderia. Fora por esse amor que ela passou horas se arrumando para impressionar, escolhendo cada detalhe. Esse amor com quem ela passou as tardes de domingo discutindo sobre história e arte. Amor que a acompanhava com sua presença sem estar presente, com a certeza desse sentimento.

Esse amor que, quando tinha o rosto iluminado pelo sol da manhã, enquanto ainda deitada na cama, a fazia entender exatamente sobre o que os poetas escrevem. Era lindo, então, esse amor.

Mas isso foi antes dela se encontrar imóvel, perplexa e um pouco envergonhada de si mesma, na frente do prédio por onde pessoas tomadas por suas próprias vidas passavam sem mesmo reparar nela.

Estamos te esperando. Ela faz uma aposta consigo mesma de que até essas pessoas sabem que ela atenderia o telefone.

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Ela entra no quarto e encontra Ilana levemente se balançando na cadeira de amamentação, a filha dormindo em seu colo.

Seus olhos se encontram e ela não tem chance alguma de resistir. Encontrar o olhar de Ilana é como estar na beirada de um penhasco íngreme, contemplando o oceano azul bem lá no final da queda – você é puxada para dentro e não consegue resistir, ao mesmo tempo que seu corpo alerta sobre o perigo de encarar demais, e então é preciso desviar o olhar por tempo suficiente para não querer pular.

Talvez seja a memória muscular – de chegar em casa e se deparar com essa cena tantas vezes -, talvez o cérebro dela tenha finalmente entrado em curto-circuito, mas ela caminha até as duas e, fazendo carinho na cabeça da criança, encosta seus lábios nos de Ilana.

Quando ela se dá conta do que aconteceu, já é tarde demais. Porque agora ambas estão paralisadas, seus lábios encostando e sem saber o que fazer, o que faz a situação parecer ainda pior. Ela está tão próxima que sente o cheiro do amor, e isso não deveria ter acontecido, esse não era o plano.

"Desculpa", diz se afastando.

Ilana sorri levemente e se levanta, "É... aqui, pega ela. O termômetro e o remédio estão em cima do trocador se precisar".

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Agora, ela encontra Ilana encolhida no canto no sofá, olhando para o horizonte. Como sempre foi, não consegue resistir em olhar para aquela linda mulher por alguns longos segundos. Pensa que nunca imaginou que aquela força da natureza, imponente e expansiva conseguiria parecer tão frágil e pequena.

"Eu li em algum lugar que são os filhos que escolhem os pais, mas isso não pode ser verdade. A Maria é inteligente, ela não escolheria uma mãe inapta como eu", fala baixinho, enquanto se vira para Gabriela e apoia a bochecha nos joelhos e abraça as próprias pernas mais forte, "eu contei pro Breno que a gente tá juntas. 'Tava' juntas, sei lá".

"Ilana, eu –"

"Gabriela, quando você sorri pra mim eu sinto que o meu peito foi aberto e que o meu coração tá exposto, batendo por você pra todo mundo ver. E eu não sinto medo nenhum disso, porque tenho certeza de que você vai cuidar bem dele", sussurra Ilana, sem esperar uma resposta. "Eu fiquei tanto tempo pensando no que te dizer sobre o que eu sinto, mas a verdade é que eu não sei nada do amor, de onde vem nem pra onde vai. Eu não consigo descrever meu amor por você, porque eu acho que, sei lá, nem desse plano é. Existe dentro de mim, cobre todo meu corpo debaixo da minha pele".

Ela caminha até parar em frente ao sofá, invadindo o espaço pessoal da outra e passando a mão por entre os fios ondulados e bagunçados fazendo com que Ilana feche os olhos, os longos cílios encostando na bochecha e um leve sorriso aparecendo em seus lábios. Descendo a mãos pelo rosto de Ilana até chegar no queixo, puxa seu rosto para cima "olha pra mim".

Aqueles olhos castanhos se abrem, como se questionando você também me ama? Por que? e, definitivamente, ela entende sobre o que são todos aqueles poemas de amor.

Tudo começa com você é, e eu sou. E aí, nós: e por causa do amor, você irá, eu irei, até que nós iremos. Nós, juntas, seremos. 

Tudo começa com você é, e eu sou. E aí, nós.Onde histórias criam vida. Descubra agora