NEM TUDO ESTAVA DANDO TÃO CERTO ASSIM. Quer dizer, se você desconsiderasse o estresse de dormir somente duas horas por noite, de ter que lidar com ogros fanfarrões e de ter uma segunda vida secreta debaixo dos narizes de Ismini e de Vênus, então tudo estava indo muito bem, obrigada.
Trabalhar na taverna não era tão ruim assim. Zori era um chefe severo, mas nada perto de um carrasco. Normalmente, ele apenas pedia para que Clio limpasse o chão da taverna e as mesas e lavasse a louça enquanto ele cuidava do atendimento e, para quem já tinha faxinado a torre da Clareira, a Taverna dos Sete Gatos não era nada.
A maioria dos clientes ou ignoravam Clio ou a fitavam por alguns segundos até perderem o interesse nela. Do outro lado, ela não resistia em ficar observando-os de canto de olho. Quão diferentes eles eram, quão unicamente belos eles eram, quão diversos eles eram. De certo não demoraria muito para que uma bruxa aparecesse.
No dia seguinte à sua primeira noite em Vésper, Clio teve que levantar cedo para cuidar do tornozelo e bolar uma desculpa para o machucado (um gato-do-mato a arranhou no caminho para o ninhário). Aliás, elas tinha que acordar cedo todos os dias ou levantaria suspeitas. Nos dias de torneio, ela aproveitava as manhãs solitárias para cochilar. Nos dias em que Vênus ficava na torre, ela tomava dois copões de café e rezava para Kora mantê-la de pé.
Aquele era um desses dias.
Era o final da primeira semana em seu trabalho na taverna e Clio nunca se sentiu tão cansada e privada de sono. Para completar, estava chovendo, uma chuva de verão rara, fina e agradável, perfeita para se entocar na cama. Clio não sabia de onde tinha arranjado forças para ir até a Colina Nascente em um clima daqueles, mas lá estava ela, deitada debaixo de um ipê, tentando não adormecer.
Ela só soube quando olhou para Vênus sentada ao lado dela, assistindo a garoa acariciar a relva.
Vênus se virou para ela e abriu um sorriso.
― Você está com uma carinha de sono tão bonitinha. Tem certeza que não quer dormir? Eu posso vigiar Astro no seu lugar.
A alguns metros de distância, Astro rolava na lama e apanha as gotas de chuva com a língua. Ele ficava empolgado com a chuva, empolgado o suficiente para descer colina abaixo se ninguém o chamasse de volta.
Clio tentou balbuciar um "não", mas foi interrompida pelo seu bocejo.
― Certeza absoluta? ― Clio negou com a cabeça. ― Você anda tão sonolenta ultimamente. A insônia voltou?
― Não, não. ― Clio esfregou as pálpebras com as pontas dos dedos na tentativa de expulsar o sono. ― Acho que é só um pouco de fastio. Criaturas com linhagem feérico tem isso às vezes quando adotam hábitos diurnos. Não é recorrente comigo porque eu sou híbrida, mas acontece. ― Era melhor mentir do que ir na linha "estou me esgueirando Vésper todas as noites porque quero encontrar uma maneira de você se apaixonar por mim, por favor, não me dê uma lição de moral de como você está bem mesmo amaldiçoada".
― Se tiver chocolate em pó na torre, posso fazer chocolate quente pra você? É um ótimo conforto contra o cansaço e combina com esse tempo chuvoso. ― Vênus fitou a chuva com um brilho nostálgico nos olhos. ― Toda vez que eu ou meus irmãos quase morríamos de tanto treinar ou estudar, nós voltávamos para casa e mamãe fazia chocolate quente para a gente. A sensação era horrível de primeira, porque Ilda é quente como o inferno, mas o gosto docinho era era incrível e, no fim das contas, um pouco a mais de calor não mata ninguém, especialmente quando era o calor dela nos abraçando.
Vênus continuou falando sobre sua família e sobre seu lar em Ilda. Meses antes, Clio teria revirado os olhos e até sentido inveja, mas agora ela não se importava em ouvir Vênus falando e falando horas a fio sobre qualquer coisa, principalmente sobre ela mesma e suas lembranças e os pequenos detalhes de sua vida e tudo que fazia dela ela.
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VÊNUS SEM AMOR [concluído]
FantasíaQUE SEU CORAÇÃO DE FERRO SEJA SUA ARMADURA, TE PROTEGENDO PARA SEMPRE DA LÂMINA DO AMOR. Clio é filha de Ismini, uma das bruxas mais poderosas do condado de Atera. Sua linhagem deveria fazê-la tão respeitada quanto sua mãe, mas o sangue humano de se...