Capítulo Único

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O relógio repousava sobre o aparador do hall de entrada.

O bengaleiro estava abarrotado de casacos grossos e de guarda-chuvas fechados que embebiam o chão de água.

Ana havia chegado um pouco antes das seis da tarde.

— E depois? O que aconteceu a seguir? — ouviu a sua vizinha perguntar, num tom inundado de curiosidade. — Contaste-lhe?

— Claro que não! — respondeu a sua cunhada, após bebericar um pouco do seu chá de frutos do bosque. — O meu marido ainda tentou alerta-la, dizer-lhe para não confiar naquele homem, mas eu não deixei! Não devemos meter-nos na vida dos outros! Para além do mais, a mim ninguém avisou...

Ana sentou-se silenciosamente numa das seis cadeiras que rodeava a mesa retangular da sala de estar. Os sofás estavam ocupados.

— Fizeste bem, amiga! Ela está sempre com aqueles decotes exagerados, com aquelas minissaias super curtas.... Tenho a certeza que já se conheciam! — exclamou a sua sogra, para depois colocar uma bolacha de recheio de morango na boca e pegar outra do pires que estava sobre a mesinha de centro.

— Céus! Tens a certeza disso, amiga? — questionou a vizinha, com uma expressão escandalizada no rosto. — Que horror!

— Já não há decência neste mundo! Na minha época não havia nada disto! É uma vergonha! — confirmou a sua sogra, retirando mais duas bolachas do pires. — Filha minha não andaria nesses preparos vergonhosos, nem falaria com essa gente! Meu Deus, que horror!

— Se a minha filha andasse com esse tipo de gente ou nesses preparos, não a deixaria sequer sair de casa — expressou-se a cunhada, bebendo um pouco mais do seu chá de frutos do bosque. — Felizmente, é ajuizada.

— No nosso tempo havia mais respeito — afirmou a sua sogra, retirando mais uma bolacha. —, agora andam todas nuas, com aqueles cabelos pintados e umas unhas tão maljeitosas... É ridículo... Uma ofensa!

— E se dizemos alguma coisa ainda ficam ofendidas — desdenhou a cunhada, com arrogância. — A juventude de agora não sabe o que é respeito, e ainda nos chamam de antiquadas ou intrometidas...

— Roupa velha, queres tu dizer! — corrigiu a vizinha.

— Olha, tu tens razão! Os tempos estão cada vez piores! — reafirmou a sua sogra, com uma expressão exasperada no rosto. — Ainda há uns dias ouvi na televisão que uma mulher matou o marido! Dizia-se vítima de violência, de maus tratos, mas cá para nós, é tudo mentira! Ela não trabalhava, vivia ás custas do pobre homem... É escandaloso!

— Um homem desses é um santo ao pé destas mulheres... — comentou a vizinha, abanando exageradamente a cabeça. — Eu trabalho tanto..., tanto... e não arranjo ninguém! Só existem injustiças neste mundo... Só injustiças!

— Tens de ser mais ousada, amiga! — disse a sua sogra. — Uma maquiagem vibrante e umas roupas sensuais fazem milagres! Especialmente se forem vermelhas ou pretas... Tenta, homens não faltam!

— Sim, mas... — hesitou a vizinha, levantando-se do sofá logo de seguida. — Olha-me para esta cintura, estas gorduras são caóticas! Qual é o homem que vai querer uma gorda?

— Mas tu não és gorda! Essas gorduras desaparecem com alguns quilates — ouviu a cunhada dizer num tom confiante, antes de servir-se de mais chá. — Ainda és uma mulher deslumbrante... Nos bares que frequentavas eras uma sensação! Não desistas!

— Tempos que já passaram e não voltam mais. Amiga, olha bem para mim, estou sozinha, fresca, mas ninguém quer carne dura!

Ana presenciava a conversa das três mulheres em silencio. A sua irmã, tempos a tempos, olhava para ela com olhinhos de cachorro. Estava ali e decididamente contrariada.

Momento Incerto (Conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora