Éris, a deusa da discórdia descia as escadas em passos lentos. Enquanto sua fúria dominava o ambiente, seus cabelos dourados se tornavam chamas fortes, vivas e terríveis. Seus olhos vermelhos observavam o ambiente com puro desgosto, como se todos aqueles seres não fossem nada além de pequenos grãos de arroz diante de sua grandeza. Seu corpo nu, não era bonito, mas sim exótico. Seus seios eram fortes, firmes. As pernas eram compridas, a barriga lisa sem nenhuma curva de sedução. Contudo, o que mais me assustou diante do cenário em que estava foi seu corpo manchado de preto pelo carvão que se desfazia de seus cabelos. Sua pele era tão escura como a noite, tão fria como as montanhas no inverno. Tudo ali demonstrava puro terror.
Eu, como humana, não ousei dar um passo a frente. Desviei meus olhos todas as vezes que os dela se focavam em meu ser. Não tive um pingo de medo de admitir que estava com medo. Seria tolice negar. Não era covarde de admitir e sim realista. Meu corpo estava paralisado demais para correr, o sangue em minhas veias a muito havia congelado pelo tremor. A fumaça escura que saia pelos cabelos da deusa, emundava todo ambiente, tornando impossível enxergar além de um palmo a frente.
Apertei meu corpo sobre a parede gélida em busca de consolo, rezando baixinho para que os outros seres me ouvissem clamar por misericórdia.
Orei nas línguas estrangeiras consideradas sagradas enquanto lagrimas duras escorriam por meu rosto. Senti minhas pernas bambearem quando a escuridão me atingiu, transformando-me em névoa e fúria.
- Como ousa clamar por outros em minha terra, criança? – A voz que adentrava minha mente era forte. Tão antiga quanto as páginas dos livros de um ancião.
- Não quis ofendê-la. – Implorei, tentando me desvencilhar de suas garras que prendiam minha mente.
- É o que todos vocês dizem. – Respondeu ela com uma gargalhada que fez com que meu ar fosse aniquilado.
Uma serie de emoções agudas e desesperadas me atingiram como fogo na pólvora. Eu não sabia se estava morrendo ou simplesmente renascendo. Me senti tão feliz e ao mesmo tempo tão apavorada que por um momento pensei que estava no inferno, sobrevivendo diante da minha mente doentia. Visões distorcidas atingiam meus olhos, lugares escuros se entrelaçavam com imagens coloridas e brilhantes. Nada era fixo, não havia padrão. Era uma mistura de preto e branco, luz e escuridão.
Pensei estar louca, mesmo acreditando que um pingo de lucidez ainda me restava quando diante do meu medo lutava por minha vida. Eu não queria desistir, não queria me entregar a provocação de um ser maior. E enquanto tentava fugir de mim mesma, sentia suas garras raspando minha pele, me fazendo implorar pelo fim.
Porém, me mantive em pé. Apegada a tudo aquilo que guardei tão profundamente em meu ser, minha fé inabalável no invisível. Naquilo que os olhos não poderiam ver, mas o corpo era capaz de sentir. Comecei a pronunciar as palavras sagradas, convocando os deuses da Luz e da Guerra para vir ao meu encontro. Orei para os seres divinos enquanto os dedos gélidos e podres de Éris esmagavam meu pescoço. Orei até sentir que as palavras sagradas se desfaziam em um sopro.
E então, tudo escureceu e meu corpo se desfez.
Senti quando minha alma foi levada, escoltada para o submundo.
Já vivia a muitos anos nas terras sagradas para saber que todos aqueles que morrem com negócios inacabados são levados para o encontro de Hades. E se tinha uma coisa que acumulava por anos eram palavras não ditas para pessoas que me disseram muito.
Entrei pelos portões sombrios daquele mundo, mas diferente do que esperava não fui levada para a escuridão, e sim, para a luz.
- Venha criança. – Uma voz angelical, cheia de melodia me chamou. – Venha para a luz.
Mas assim como a morte, eu não quis aceitar.
Não estava preparada para aceitar as trevas, contudo também não queria ir para luz.
Meu desejo era viver, então orei, orei e orei. Para o deus da vida me dar a oportunidade de caminhar pelas terras sagradas novamente.
- Você me renega? – Disse a voz Angelical.
- Não, minha deusa. Só quero viver. – Respondi, não querendo ofender.
- Que assim o seja.
E outra onde de emoções me atingiu quando senti braços fortes circularem meu espírito. O ambiente mudou, e logo estava sendo carregada por jardins cheios de flores exóticas e perfumadas. A luz do sol atingia meu rosto, causando uma familiaridade com a terra, mesmo não estando mais lá.
- Para uma humana, você é bem corajosa. – Disse o homem que me carregava.
Dei de ombros, incapaz de criar um diálogo decente. – Só quero ir para casa.
- E você irá. – Afirmou o homem. – Mas antes, preciso que me responda uma pergunta.
- E qual seria? – Me apressei em dizer.
- Por que voltar? Quando se pode viver sobre os deuses?
Pensei por um momento, aquilo não me foi dito. Somente me levaram para a morte sem opção de escolha.
- Porque Éris me tirou a vida, quando mal tive tempo de vive-la.
- Mas você tem a oportunidade de crescer junto aos maiores, de comer nossa comida, beber do nosso vinho. Não quer ficar?
Encarei o homem que me segurava fortemente em seus braços, seu semblante era esplendido, como se tivesse sido esculpido pelos deuses, o que certamente foi. Seus olhos eram de um castanho escuro que ornava de maneira extraordinária com os seus cabelos cachoados cor de mel. E foi através daqueles olhos que percebi quem ele era.
Hermes, o deus dos viajantes. Ele me mostraria o caminho para onde quisesse ir. Para a Luz ou para as Trevas, para a terra ou para o inferno.
- Eu quero ir para casa. – Respondi, enquanto lagrimas escorriam sobre meu rosto.
Ele me encarou, deslumbrei um pouco de descrença em seus olhos. Mas então, ele sorriu.
Um sorriso que iluminou meu ser.
- Que assim seja.
Um forte clarão atingiu meu corpo, teletransportando minha mente para um universo de cores, sabores e cheiros. O inacreditável se tornou visível diante dos meus olhos. Não existia início nem fim. Amor ou ódio. Só o agora importava.
Meu corpo colidiu com algo duro que queimou minha pele. Meu coração palpitava enquanto sentia o balançar de meus braços. Não entendia o que estava acontecendo, somente que não estava em um lugar habitual. Tinha medo de abrir os olhos e me deparar com o terror do palácio de Eris. Com seus olhos vermelhos e seu cabelo flamejante.
Apertei meus olhos mais firmemente enquanto um par de mãos quentes me balançavam.
- Vamos, acorde. – Dizia a voz. – Você vai se atrasar.
Forcei meu corpo sobre a superfície que antes era dura, mas agora parecia macia, confortável demais.
Onde eu estava?
O que estava acontecendo?
E foi então que meus olhos se abriram, e a surpresa me atingiu.
Eu não estava no submundo, muito menos com Éris. Mas sim em uma cama confortável, com uma coberta rosa cheia de flores desenhadas. Olhei em volta e tudo que encontrei foram quadros estranhos cheios de brilho em um cômodo branco e espaçoso, cheio de moveis de madeira dos quais eu não sabia que existia.
- Ufa, Nix. Até quem fim. – Disse a mulher. – Vamos, levanta-se. Ou você vai se atrasar para a aula.
- Está bem. – Respondi, ainda atordoada.
Levante-me da cama e caminhei até o espelho. Observei meus olhos através do reflexo, eu ainda era eu. Mas quem eu me tornei diante do tempo?
Observei alguns retratos coloridos sobre o espelho. Capturas de momentos com pessoas que eu não me lembrava, ou talvez lembrasse, só estava perdida.
Respirei fundo, ergui minha cabeça.
E como em todos os momentos em que estivesse perdida.
Simplesmente fechei meus olhos.
E orei.

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A Discordia.
Short StoryUma garota luta pela própria vida enquanto enfrenta seu pior pesadelo. Nada é como realmente se vê, e tudo pode mudar com apenas um piscar de olhos.