6. Ele

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Talvez pelo choque ou pela raiva, quando ergui a cabeça de novo, senti que precisava dar alguma indireta, mesmo que sutil, de que tinha ouvido tudo. Aproveitando o fato do banheiro feminino estar logo ali, caminhei em frente dos dois olhando bem nos olhos escuros do responsável por aquele incômodo sinistro que não sentia no peito desde os meus malditos 13 anos.

Entrei rápido demais lá, mas não o bastante pra deixar de capturar a reação dele, porque o Daniel não pareceu surpreso como alguém pego no flagra pela polícia usando "coisinhas" proibidas ou traindo alguém. Na verdade, apesar de seu último sorriso ter morrido na mesma velocidade em que suas pupilas dilataram, naquele rosto havia um tom de... dor. Mas não por ele próprio.

Com as costas coladas na porta da cabine, respirei várias me esforçando pra prestar atenção nos detalhes das minhas mãos e esquecer, nem que só por um segundo, aquilo.

Tudo bem, ele nunca tinha tentado se aproveitar de mim e muito menos pareceu tentar me seduzir, mas quem me garantia que talvez, há sabe lá Deus quanto tempo, ele não estivesse usando nossa amizade como uma ponte pra me conquistar? Quer dizer, antes eu jurava que o garoto era gay ou assexual e agora tinha acabado de descobrir que já tinha tido vontade de me pegar! Como confiar de novo nas minhas inclinações ao positivo?

Não é como se fosse justo culpar ele por ter sentido (e talvez ainda sentir) atração por mim, mas isso não mudava o fato de eu me sentir... vulnerável. Vulnerável e estranhamente confusa.

Só que a parte da confusão não tinha a ver só com o que ele sentia por mim.

Tinha a ver com o que eu sentia por ele.

*~*~*~*

Talvez não seja nenhuma surpresa dizer que, nas minhas últimas horas na escola, a única comunicação que tive com o Daniel foi através dos olhos e que até o barulho do ventilador conseguia me tirar a concentração que tentava ter na aula.

Pensei tanto e em tantas coisas que, um hora, pensei até em...

— TÁTA! — Senti as mãos da Vê batendo palmas na frente da minha cara. — ME ESCUTA!

Os gritinhos do pessoal quando uma música de funk que era a sensação do momento começou a tocar me fizeram lembrar aonde a insistência da minha melhor amiga havia me levado: a festa do Jonas.

— Desculpa... — resmunguei esfregando os olhos como se estivesse com sono. Caçamba, o negócio com o Daniel tinha derretido meu cérebro!

— Tudo bem, amiga. — Ela riu toda leve, e o batom borrado denunciou muito bem o motivo. — Só me acompanha até o banheiro, por favor Sei lá, tem um monte de menino aqui. Vai que acontece alguma coisa...

Assenti com a cabeça e então nós duas fomos até lá.

Fiquei pra fora da porta de "vigia" e, como já esperava que ela fosse demorar, quis aproveitar o tempo pra voltar a pensar sobre o Daniel. Mas, antes que pudesse lembrar bem onde tinha parado, outro problema bem maior me apareceu...

— Olha só... — Ele riu de um jeito bem debochado. — Então quer dizer a mendiga "evoluiu"? — Brincou com o fato de esse ser o nome da música tocando. —  Tomou um banho de loja, foi?

É. Era aquele maldito.

Apertei os olhos tentando conter meu riso de nervoso automático. Era incrível como ele não tinha "evoluído".

— Poisé... — resmunguei olhando o nada meio perdida (pra falar a verdade, com preguiça). — Eu tomei um banho de loja, de noção, beleza e muita vergonha na cara, Pedro. É uma pena como você parece não ter tomado nenhum...

— Ah, é que eu nunca precisei. — Se gabou todo cheio de si. — Tem gente que já nasce "direito", sabe, Tati? Com o cabelo bom, a pele certa, o corpo bonito...

Ri a contragosto começando a me desesperar.

Pra alguém que desde a semana passada vinha tendo surtos, eu sinceramente me surpreendi comigo mesma por ainda não ter voado no pescoço dele.

— Você tá tão exaltado... — Provoquei me aproveitando do poço de melancolia em mim naquela hora. —  Devia tomar um chá. Na cozinha tem um de uma planta muito boa. Se chama "sumiço". Vai lá se servir.

A gargalhada pontuda e horrorosa dele quase me ensurdeceu. Meu Deus, como um dia eu tinha jurado amar aquele monstro?

— Aiai, Tati... — disse pondo na mão barriga. — Você me dá dó, sabia? Tem até um senso de humor até legal e uma bundinha razoavelmente bonita, mas, com esse jeito, nenhum cara no mundo vai te querer pra algo sério.

— Ah, mas pode ficar tranquilo... — retruquei num sorriso enojado. — Se todos os caras do mundo forem como você, pra mim vai ser um troféu morrer virgem.

E, bem nessa hora, pra fechar com chave de ouro o dramatismo na minha frase, a porta abriu e a Vê cruzou os braços, encarando ele.

— Repete se você tem coragem, arrombado! — Tirou o salto do pé e arremessou, mas, apesar da cara de bunda, ele não revidou. — Vai, repete o que você disse pra ela, Pedro! Cê não é o "bam-bam-bam"? O "pica das galáxias"?

Irritado, mas percebendo que não valia mais a pena insistir (já que a Vê era bem mais esquentada e violenta que eu), o Pedro só caminhou pra longe fingindo que não tinha nada a ver com o que tinha acabado e acontecer ali.

Vê voltou o olhar pra mim, mudando o semblante de brava pra emocionada.

— Parabéns, Táta. — Me abraçou. — Tô orgulhosa pelo jeito que você respondeu ele, amiga. Cê evoluiu até mais do que eu tinha pensado!

Tentei devolver o abraço com a mesma felicidade, mas aquela conversa tinha sugado o resto de energia em mim. Foi o primeiro sinal da noite a validar o meu medo...

O segundo veio horas depois, quando o Jonas quase levou a Vê pro quarto dele à força.

"Humor até legal e uma bundinha bonita" — escutava as palavras reverberando quase como se ele ainda estivesse ali, tentando sugar minha paciência e meu amor-próprio.

Era isso. Os caras só ligavam pra corpo e um bate-papo legal.

E era só isso que o Daniel devia ver em mim também:

Uma colega engraçada e potencialmente jantável.

O Cadeado (quase) Inquebrável [Conto]Onde histórias criam vida. Descubra agora