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Gosto que a camisa esteja um pouco mais larga do que deveria, mas não é uma questão de estilo. A verdade é que o volume na região do peito me deixa meio... disfórico. Como posso me sentir bem comigo mesmo, se meu próprio corpo contradiz a quem sou? Se faz com que eu seja obrigado a me encaixar a um gênero ao qual nunca pertenci?

Ai, ai... Afasto os pensamentos, porque eles nunca me levam a lugar nenhum. Em frente ao espelho do meu quarto, emoldurado em folhas verdes de plástico, quando posso entender melhor a forma como sou visto de fora, tudo isso fica mais forte. Toda a certeza, que tanto demorei para ter, fica mais nítida. Tudo o que sempre senti, desde criança, e que só agora faz sentido.

Dou uma última olhada na roupa, e, meio tropeçando, apanho a sacola de pano (com o desenho da capa do álbum AM, dos Arctic Monkeys, que havia feito com tinta de tecido) em que levava meus pertences. Checo se tudo está okay mais algumas vezes antes de, de fato, sair.

Céus, por que tenho que ser tão inseguro?

É só mais um dia de trabalho. Certo?

***

- Oi, gata! Bom dia! -- cumprimenta Cami, de trás do balcão, quando entro no ambiente confortável e fresco. O sininho da porta toca, e ela tira os olhos do celular e me lança um sorriso animado, enquanto ajeita os óculos de armação redonda. Sei que não mostro metade de sua animação, mas ela já está meio acostumada com isso.

E, bem... explicando o vocativo, Cami não faz por querer. Me sinto muito melhor com os pronomes masculinos, sim. Mas ela não sabe disso. Pensar sobre contar é um gatilho de verdade... pelo menos por enquanto.

Será que um dia vai deixar de ser?

Trabalhamos em uma lanchonete de uma rede bem popular. Geralmente, só no período da tarde, mas estamos de férias escolares, então passou a começar de manhã. É bem agradável, até. Gosto do cheiro bom dos ingredientes que preenche o ar, e da luz que invade pela janela de vidro. Nada que me deixa exatamente radiante, mas, bem... é confortável.

A rua, coberta por calçada, também possui ares prazerosos, com tímidos canteiros de flores e poupas pessoas andando por aí.

Fecho a porta e vou para perto dela, do lado de dentro. Sua energia de felicidade é forte. Céus, nunca entendo como consegue estar toda animada numa destas manhãs monótonas do interior de São Paulo, no nosso emprego temporário, deixando algum burguês por aí cada vez mais rico.

Mas aquela é Cami, e até sua roupa sorri. Está uma graça, como se tivesse saído diretamente do Pinterest, com a camisa do uniforme e uma saia lilás, além de presilhinhas coloridas e brincos de balas de ursinho.

Observo tudo, com graça. E, assim que nos encontramos, não demora a vir em minha direção.

-- Gostou? Demorou mais de um mês para chegar, mas pelo menos não decepciona. -- ela balança a saia na minha direção.

-- Estou chocada, Cami. É a sua cara. -- e é mesmo. As tranças que usa nos cabelos estão roxas, agora, e é tudo muito harmônico. Admiro tanto a forma como Camila é ela mesma o tempo todo, e o quanto simplesmente adora ser.

-- Sim! A Helo adorou. Ela vem me ver hoje, aliás.

Sei que está me analisando de cima a baixo, porque dá aquele sorrisinho clássico dela.

-- É i m p r e s s i o n a n t e. -- diz -- Suas roupas ficam cada vez mais gays. Você é a não-gay mais gay que existe.

-- Ah... -- sinto as bochechas pelarem -- eu nem sei se sou mesmo...

Ela ri. Idiota. Sabe que dizer esse tipo de coisa me deixa sem jeito.

-- A Helo vai dizer a mesma coisa, mas nem liga. Está muito boa. -- sim, querido leitor, é isso mesmo: a Cami só fala da namorada. Mas está tudo bem, porque elas são meu casal favorito em todo o mundo, tanto em ficção quanto na vida real. É tão... genuíno.

com gosto de café.Onde histórias criam vida. Descubra agora