- Dra. Gabriela, a paciente das 16h já chegou. Posso chamar?
A voz da secretária trouxe-me de volta à realidade. Sobressaltada, desviei o olhar da lista de atendimentos, que me observava, inquisitiva, por um sem-número de minutos - desde a saída da paciente anterior.
16h ----------- Ilana Prates --------- Pré-natal
Esse nome. Custei a acreditar, vacilei, engoli em seco. Será? Só podia ser. Nome e sobrenome incomuns. Quantas Ilanas Prates havia no Rio de Janeiro? A possibilidade me desestabilizou. Aquelas onze letras reavivaram em mim as memórias de uma outra Gabriela. Uma jovem Gabriela que acreditei não ser mais Eu há anos. Há quantos anos mesmo...?
A secretária, junto à porta, me fitava aguardando a resposta. Inspirei fundo. Expirei. Endireitei o jaleco. Sorri para a funcionária:
- Pode chamar. Muito obrigada, Fernanda.
...quantos anos? Uns quinze, talvez. Ou dezesseis. Quem sabe não é outra Ilan-
A porta se abriu novamente, desta vez com Fernanda acompanhada por mais duas pessoas. A paciente das 16h entrou, caminhando com o balanço de quem no ventre carrega a Vida. Muita vida. Alta como uma árvore, seus membros longilíneos faziam um belo e harmônico contraste com a barriga arredondada, quase plenilúnia. Mas suas feições denotavam tensão - apenas pela expectativa da consulta ou por algo mais que ficara no Mundo lá fora? Parecia cansada e apreensiva. Margeando sua boca, um sinal inconfundível. Reconheci-a. Ilana.
Levantei-me para recebê-la, o sorriso em meus olhos-lábios comunicando tudo que nenhuma palavra poderia dizer. Em um eterno instante, nossos olhares se (re)encontraram. Será que ela se lembrava de mim? Seu rosto, antes crispado, iluminou-se de surpresa. Ela me reconhecia. Gabriela.
- Não acredito. Meu Deus do céu, Gabriela?!
Ela veio ao meu encontro, os longos braços envolvendo-me. No abraço senti seu cheiro amadeirado e marcante: uma fragrância antiga, que me tocou fundo. Naquele momento, quem reconhecia aquele aroma não era a obstetra, mas a Gabriela de outrora. Quanto tempo...
Com a voz ligeiramente mais aguda pela emoção, tentei sem sucesso disfarçar o tremor em minha pergunta:
- Mas cê não tava morando na Itália?
- Tava... há vinte anos atrás - ela respondeu gesticulando e esboçando um sorriso tímido. Ouvi seu timbre morno, como fogo contido que arde por dentro em segredo. Vinte anos! Não era possível! Rimos juntas e o riso ficou suspenso no ar, na névoa de memórias que nos envolvia. Quantos sentires cabiam naquelas duas décadas? Eu não sabia medir e acho que ela também não.
Então, com uma ponta de curiosidade na voz, questionou meu sobrenome:
- Você não era Macedo?
Expliquei no automático, com aquelas frases que temos sempre à mão. "Gaspar" era do meu ex-marido e acabei mantendo. No trabalho todo mundo já me conhecia daquele jeito e o nome fora ficando... Tornara-se parte de mim, ganhara novos significados.
Sustentamos o olhar até a névoa se dissipar. Então, lembrando da outra pessoa presente no consultório, Ilana apresentou-me o homem que a acompanhava.
- Ah, e esse é o Breno, meu marido.
Troquei um aperto de mão cordial com ele, que parecia um pouco atordoado com a situação. Ali, naquele cumprimento, a Macedo devolveu o lugar à Gaspar. Sorri para o casal e, bem-humorada, convidei-os a sentar:
- Quer dizer que a senhorita está gravida?
Minutos após, eu folheava os exames de Ilana - vinte e quatro semanas, gêmeas. "Aos 45 do segundo tempo", ela brincou, enquanto bebericava a xícara de café que eu lhe servira.
- Segundo cafezinho, hein - Breno comentou em tom de reprovação. Ilana defendeu-se, resoluta, com um muchocho e um dar de ombros:
- Pra quem bebia vinte está ótimo!
Escutando minhas orientações, Ilana Prates tinha o mesmo semblante inquieto de quando entrara no consultório. A nova rotina da gestação a preocupava. Ali, ela parecia se dar conta de que o Mundo precisaria esperar, pois ela esperava. Higiene do sono, alimentação equilibrada, exercícios adequados, consultas semanais. Naquele olhar que me mirava, eu conseguia sentir os cálculos de uma mulher que não se permitia parar. Os cálculos daquela mulher-dínamo.
Mas, entre aqueles cálculos e linhas de preocupação, eu também enxergava o vislumbre da moça do Posto 9. A sombra de suas pálpebras de sonho, areia, sol e lembrança. Será que ela se lembrava de tudo?
Então, declarou a Dra. Gabriela Gaspar - ou seria Macedo? -, ao fim da consulta:
- Mas fica tranquila; não é nenhum bicho de sete cabeças. Cê vai tirar de letra.
Trocamos um último olhar cúmplice e profundo. Ela me sorriu, desmanchando a preocupação pelo instante verbalizado :
- Obrigada, Gabriela. Mesmo.
O casal se foi, deixando no consultório duas Gabrielas em um silêncio etéreo. A obstetra, Gabriela Gaspar. A jovem de vinte anos atrás, Gabriela Macedo. As duas ficaram lá, com o olhar distante, sem saber o que dizer uma à outra.
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Entre Nós
Short StoryGabriela Gaspar é uma renomada obstetra do Rio de Janeiro. Especializada em gravidezes de alto risco, a médica atende uma paciente que a faz lembrar de um passado que ela julgava ter superado. Ficção inspirada nas personagens Gabriela e Ilana, da n...