A vida é demasiada leve. Tão leve quanto um galho seco caindo na lama úmida de um manguezal. Alguns podem não se aperceber disso. E desaperceber-se é um fato comum.
Mas, ela o percebia. Desde o primeiro sobrevoo. Talvez, por conhecer a leveza do vento. Das penas. Do voo. Da fome. Esta percepção a fez enxergá-lo. Mesmo tendo a árvore, com raízes evidentes, sombreando sua visão. Ela o via em seu trabalho árduo, o cofo cheio de caranguejos vivos, saracoteando uma fuga imprevista.
Ela o via com interesse verdadeiro. Não opaco, raso, invisível. Por isso as contínuas voltas profetizando um futuro ardente, avassalador. Diferente de tantos, o procurando apenas para receber, o que não tinham coragem de apanhar. Sem mesmo saber seu nome. Sua dor. Seu suor. Sua solidão.
Ela notava o corpo magro, a rudez de seus músculos. Vislumbrava a pele negra encarquilhada pela quentura do tempo. Malhada em cinza pela profissão abarcada. O braço enterrado até o ombro, ensejando o crustáceo ossudo, escondido, cravejando suas pinças nos grossos dedos.
Ela ouvia seu assobio melancólico. Uma canção antiga. O lamento do homem sonhando com esperança. A amante que nunca chega.
Ela o cobiçava. Deitado abraçando a água morna. Seu leito. Sua Lida. Seu triunfo. Sua desgraça. Os pés calejados, entalhados nas pedras da ignorância alheia. Duros e frios preconceitos.
Ela percebeu: O vento, a quebra, o baque, o frio.
A cabeça virada de lado, chagada em seu pensamento. O sorriso congelado para sempre. Nem música, nem pranto, nem cruz.
Porque a vida é demasiada leve. Tão leve quanto um galho caindo.
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NECRÓFAGA: A ave, e o catador de caranguejo
Short StoryUm miniconto mostrando a dura lida de um catador de caranguejo, sob a visão de uma ave que sobrevoa seu trabalho. Fala, sobre um olhar profundo, de como não estamos atentos aos que nos rodeiam. Muitos são invisíveis aos nossos olhos.