Uma vez, num sonho antigo, conheci um sujeito bastante peculiar. Sentado em sua mesa vazia, encarava com olhos brancos a janela caquética, que só não aparentava ser mais antiga que o próprio homem que a devorava com o olhar. Como o encontrei? Nem eu mesma sei ao certo, não me lembro se caminhava por uma mata densa, ou pelas madeiras enrigecidas de um cais abandonado, se deixei pegadas em areias fofas ou em grama molhada. Só me lembro de seguir sem rumo até encontrar uma porta perdida, tão perdida quanto eu.
Me lembro de ouvir um silencioso convite para entrar, sorri ao ouvir o rangido da maçaneta, que estranhamente soava como sol maior, quão irônico! Após o belo acorde ao entrar, me deparei com aquele homem dissonante, sentado em sua cadeira velha, vestido com roupas amarrotadas. Não sei quantos séculos este sujeito havia permanecido naquela cadeira, certamente o suficiente para convidar cada imperador que Roma já teve para tomar uma xícara de chá. Seus bigodes brancos, embora envelhecidos, eram muito bem cuidados, levantados em uma ângulo certeiro e com curvaturas tão perfeitas em suas pontas que suspeito que foi nelas que Euclídes descobriu a proporção áurea. Seus sapatos, feitos de couro negro, reluziam em meio ao mofo, brilhantes o suficiente para confundir algumas mariposas perdidas.
Tudo naquele senhor era dissonante, contraditório, inexplicável. Ele não me proferiu uma única palavra, sentado em sua mesa vazia, em seu quarto vazio, encarando a janela com a mente, muito provavelmente, também vazia. Lembro-me de, relutante, me aproximar da figura, foi quando percebi que o velhinho misterioso, por trás da corcunda e dos bigodes brancos, chorava lágrimas silenciosas por seus olhos de vidro. Me assustei com seus olhos falsos, não devido à imagem incomum, e sim à ideia absurda de um velho cego se emocionar com uma paisagem que não pode ver. Tive pena, o homem encarava uma janela que lhe mostrava apenas algumas colinas sem graça, a grama quase morta e o céu com poucos pingos de azul, se já não fosse deprimente o suficiente se encantar com uma cena monótona dessas, imagine para aquele que não pode nem ver. "Pobre homem, deve estar imaginando que sua caquética janela lhe mostra belas paisagens, tamanha seria sua decepção se pudesse ver."
Como se lesse meus pensamentos, o homem se virou em minha direção, e, ainda com lágrimas nas bochechas, levou as duas mãos enrugadas ao rosto, logo depois estendendo-me seus dois olhos de vidro. Relutante, os envolvi com minhas proprias palmas trêmulas, o velho ainda me encarava, com orbes agora vazias, era como se me dissesse silenciosamente o que fazer. Levei as esferas geladas aos meus próprios olhos, e neste momento descobri que estes já não estavam ali. Com as próteses de vidro, novamente olhei pela janela, e dessa vez não pude impedir as lágrimas de caírem desenfreadas. Fui surpreendida com um calafrio bem no fundo da alma, não sabia se estava vendo os jardins suspensos da babilônia no auge de seu esplendor, ou se estava ouvindo os próprios pensamentos de Debussy enquanto compunha Clair de Lune, estes dez vezes mais belos que a própria música. Por um momento pensei estar escondida por entre os arbustos do jardim de Monet, assistindo enquanto ele pintava Nenúfares, por outro, tive a impressão de ser a própria tinta azul que ele jogava na tela. Minhas lágrimas pingavam, olhei para a mesa abaixo de mim, e esta, antes vazia, agora estava lotada de pilhas e mais pilhas de papel. Assustada pisquei rapidamente, fazendo uma lágrima grossa cair na folha, para minha surpresa a pequena gota de água não deixou uma mancha, e sim um verso, escrito com minha própria letra. Olhei para o homem ao meu lado e sorri, invejei seus olhos de vidro e admirei suas belas lágrimas, quando olhei para baixo novamente, o papel que manchei com um verso agora era um conto sobre um velho solitário de bigodes áureos e olhos vazios, cujas lágrimas escreviam poesias sobre os mais belos lugares que sua cegueira branca o fez visitar.
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Olhos de Vidro
Short StoryApenas mais um conto perdido e uma tentativa falha de explicar a arte.