Pedro abriu a tampa o mais rápido que pôde, para os dedos não congelarem. Enquanto Maria pegava duas tigelas e duas colheres, uma massa preta foi revelada, fazendo as crianças salivarem.
— Sorvete de chocolate! — Pedro disse, com os olhos castanhos hipnotizados pelo pote.
A mãe de Pedro cuidava de dentes e raramente o deixava comer alguma besteira, principalmente se tivesse uma coloração escura. Os dentes do garoto eram tão brancos que muitas vezes Maria não conseguia desviar o olhar, mas só mais tarde foi entender que não era bem para os dentes que olhava, e, sim, para o seu sorriso.
Maria se apressou em encher as tigelas até a boca, enquanto Pedro ainda encarava o sorvete. Ela precisou fazer força extra, semelhante a um paleontólogo que escava a terra à procura de relíquias. A garota deu um suspiro quando terminou, nenhuma gota de suor estava em sua face, embora a respiração estivesse ofegante.
Bartolomeu entrou na cozinha, os olhos grandes e redondos cobertos de remorso. O cachorro deixou escapar um choro pelo bigode e, logo depois, deu um tapa no próprio focinho, se repreendendo por chorar. Maria sabia que toda aquela cena era fingimento e também sabia que a força que Bartolomeu fazia para não chorar dava mais credibilidade à atuação.
Essa era a oportunidade perfeita para Maria se vingar do susto que o cachorro deu nos dois, quando entraram na cozinha, mas se tinha algo que Maria compreendia é que a vingança não valia a pena.
— É Bartolomeu... — Ela disse pegando outra tigela do armário e fazendo força para enchê-la de sorvete. — Me enganei quando disse que você foi um capitão severo em outra vida, você foi um ator.
Os três já seguravam as tigelas, prontos a atacar. Pedro e Maria estavam sentados um de frente ao outro, já Bartolomeu acomodou-se à ponta da mesa, como um pai de família. Maria pegou a colher para comer no mesmo instante em que Bartolomeu estava prestes a colocar a língua roxa no sorvete.
— Espera! — Pedro gritou, fazendo os dois se petrificarem. — Não devemos fazer algum tipo de oração?
Maria sabia que comer sorvete era algo sagrado para Pedro, por isso estendeu a mão sobre a mesa e o garoto a segurou. Os dois olharam para Bartolomeu que murmurou agitado já sabendo o que lhe aguardava e, logo depois, pegaram — cada um — as orelhas caídas do cachorro.
— Anjo do senhor, por favor, abençoe o nosso sorvete. — Maria rezou.
— Amém. — Pedro curvou as costas, para frente e para trás.
— Au au au. — Bartolomeu latiu.
Os três se soltaram. Bartolomeu foi o mais rápido a comer e só não engoliu tudo de uma vez para não congelar o focinho. Maria e Pedro encheram a colher e juntos colocaram na boca. Por conta do gelo demorou um pouco até a língua se acostumar e sentirem o gosto estranho, quando Maria olhou para Pedro, eles perceberam que tinha algo errado.
O sorvete estava tão salgado quanto à água do mar e com um leve gosto de carne. Maria não pensou muito e acabou engolindo para tirar logo o gosto da boca, já Pedro cuspiu de volta na tigela.
— Ecaaa! — Os dois gritaram.
— É feijoada... — Maria falou com o rosto verde, encarando a sopa que borbulhava na panela, agora tinha um motivo para comer o líquido de sua mãe, pois se sentia completamente enjoada.
Pedro chacoalhou a cabeça, fazendo os cachos dançarem por todo o couro cabeludo. Maria pulou até a pia, para beber um copo de água. Enquanto Bartolomeu se deliciava, lambendo a feijoada congelada, ciente de que sobraria a tigela de Maria e Pedro para o seu estômago.
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O Conto da Biblioteca - O Garoto Sem Histórias
AventuraNo final da Rua Wolfer, existe uma biblioteca, mas, é claro que você não sabia disso, afinal, ninguém nunca teve coragem de entrar lá. Alguns dizem que existe magia selando aquele lugar, outros afirmam que os livros podem mesmo voar. Com apenas nove...