Parte 3

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Pedro abriu a tampa o mais rápido que pôde, para os dedos não congelarem. Enquanto Maria pegava duas tigelas e duas colheres, uma massa preta foi revelada, fazendo as crianças salivarem.

— Sorvete de chocolate! — Pedro disse, com os olhos castanhos hipnotizados pelo pote.

A mãe de Pedro cuidava de dentes e raramente o deixava comer alguma besteira, principalmente se tivesse uma coloração escura. Os dentes do garoto eram tão brancos que muitas vezes Maria não conseguia desviar o olhar, mas só mais tarde foi entender que não era bem para os dentes que olhava, e, sim, para o seu sorriso.

Maria se apressou em encher as tigelas até a boca, enquanto Pedro ainda encarava o sorvete. Ela precisou fazer força extra, semelhante a um paleontólogo que escava a terra à procura de relíquias. A garota deu um suspiro quando terminou, nenhuma gota de suor estava em sua face, embora a respiração estivesse ofegante.

Bartolomeu entrou na cozinha, os olhos grandes e redondos cobertos de remorso. O cachorro deixou escapar um choro pelo bigode e, logo depois, deu um tapa no próprio focinho, se repreendendo por chorar. Maria sabia que toda aquela cena era fingimento e também sabia que a força que Bartolomeu fazia para não chorar dava mais credibilidade à atuação.

Essa era a oportunidade perfeita para Maria se vingar do susto que o cachorro deu nos dois, quando entraram na cozinha, mas se tinha algo que Maria compreendia é que a vingança não valia a pena.

— É Bartolomeu... — Ela disse pegando outra tigela do armário e fazendo força para enchê-la de sorvete. — Me enganei quando disse que você foi um capitão severo em outra vida, você foi um ator.

Os três já seguravam as tigelas, prontos a atacar. Pedro e Maria estavam sentados um de frente ao outro, já Bartolomeu acomodou-se à ponta da mesa, como um pai de família. Maria pegou a colher para comer no mesmo instante em que Bartolomeu estava prestes a colocar a língua roxa no sorvete.

— Espera! — Pedro gritou, fazendo os dois se petrificarem. — Não devemos fazer algum tipo de oração?

Maria sabia que comer sorvete era algo sagrado para Pedro, por isso estendeu a mão sobre a mesa e o garoto a segurou. Os dois olharam para Bartolomeu que murmurou agitado já sabendo o que lhe aguardava e, logo depois, pegaram — cada um — as orelhas caídas do cachorro.

— Anjo do senhor, por favor, abençoe o nosso sorvete. — Maria rezou.

— Amém. — Pedro curvou as costas, para frente e para trás.

Au au au. — Bartolomeu latiu.

Os três se soltaram. Bartolomeu foi o mais rápido a comer e só não engoliu tudo de uma vez para não congelar o focinho. Maria e Pedro encheram a colher e juntos colocaram na boca. Por conta do gelo demorou um pouco até a língua se acostumar e sentirem o gosto estranho, quando Maria olhou para Pedro, eles perceberam que tinha algo errado.

O sorvete estava tão salgado quanto à água do mar e com um leve gosto de carne. Maria não pensou muito e acabou engolindo para tirar logo o gosto da boca, já Pedro cuspiu de volta na tigela.

Ecaaa! — Os dois gritaram.

— É feijoada... — Maria falou com o rosto verde, encarando a sopa que borbulhava na panela, agora tinha um motivo para comer o líquido de sua mãe, pois se sentia completamente enjoada.

Pedro chacoalhou a cabeça, fazendo os cachos dançarem por todo o couro cabeludo. Maria pulou até a pia, para beber um copo de água. Enquanto Bartolomeu se deliciava, lambendo a feijoada congelada, ciente de que sobraria a tigela de Maria e Pedro para o seu estômago. 

O Conto da Biblioteca - O Garoto Sem HistóriasOnde histórias criam vida. Descubra agora