PRÓLOGO - seixos rolados

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Meu pai diz que estamos vivendo uma época em que as águas são mais turvas, os lagos, menos calmos, e as pedras, cada vez mais escorregadias. A vida trafega em alta velocidade através de fibras ópticas, mas poucos têm a sorte de encontrar a alma do outro — e a sua própria — em um simples olhar. As memórias digitais precisam ser cada vez maiores para comportar o volume de informações e para compensar a memória reduzida dos homens. O tempo que nos é dado parece cada vez menor. Por outro lado, e talvez por tudo isso, a tradição tornou-se uma tendência na balança que pontua o delicado equilíbrio das relações humanas. Ele fala que a era digital, com toda a evolução tecnológica, conduz as pessoas como que numa correnteza, chocando-as umas às outras, mas raramente as unindo. São como seixos rolados, pedras lisas vitrificadas, interagindo todo o tempo, mas sem qualquer aderência. Antes de conhecê-lo, de certa forma, eu já sabia disso e não achava tão ruim. Até ele conseguia encontrar um lado bom em todo o pessimismo que tal visão parecia carregar: essa dinâmica escorregadia está provocando nos seres humanos uma necessidade de criar poros, garras, arestas inaparáveis ou qualquer coisa capaz de nos manter juntos. E, com isso, poucas vezes na história da humanidade valorizou-se tanto o amor como fundamento da existência, seja ela humana ou divina. Meu pai gosta de brincar que até os vampiros, os maiores predadores da ficção, mortos-vivos e desalmados, agora são devastados pelo amor de verdade, aquele que dói e fascina, aquele que quebra todas as regras, tão insensato quanto temerário, mas capaz de produzir uma aderência maravilhosamente irremediável. Às vezes é um pouco complicado compreender tudo o que ele me diz, por seu vasto conhecimento. Eu entorto a boca, enrugo a testa, e ele sempre encontra um jeito para expressar suas palavras, pensamentos e ideias de uma forma, digamos, mais transparente. No caso das pedras lisas, da aderência e do amor incondicional, ele resumiu tudo em uma única frase: a escritora Stephenie Meyer é a versão feminina moderna de William Shakespeare. Daí eu abro um sorriso e ele me puxa pelo ombro para um aconchegante abraço. É o nosso código de compreensão. São os poros e as garras que nos unem. Meu nome é Matthew Genezen Thompson. Atualmente moro em Holden, uma pequena e fria cidade nas colinas do estado de Massachusetts, cercada por magníficas florestas de bétulas, áceres e pinheiros e por dezenas de reservatórios de água gelada e cristalina. Mas eu não nasci aqui. Não sou americano. Sou belga, tal como a estrela Audrey Hepburn e o detetive Hercule Poirot. Ainda assim, os garotos da escola preferem citar Jean-Claude Van Damme para falar das minhas origens. Nasci em Turnhout, Antuérpia, na região de Flandres, onde morei com minha mãe, Sybille, até os doze anos de idade. Ela tinha uma pequena empresa de produção de chocolates que nos sustentou por longos anos, até que as constantes crises econômicas na Europa nos afetaram e o negócio seguiu titubeante até ser decretada sua falência, o que a fez tomar a decisão mais difícil: deixar a Bélgica e vir para os Estados Unidos em busca da ajuda do meu pai, que até então eu não conhecia e que sequer tinha ciência da minha existência. Essa decisão, em um daqueles lances cruéis e descabidos do destino, acabou custando sua própria vida. Hoje estou prestes a completar quinze anos e vivo bem com essa nova família, que há três anos está se desenhando à minha volta. Ainda acordo todas as manhãs e sinto o cheiro do chocolate da minha mãe, num anúncio de que essa saudade é uma daquelas lacunas que jamais conseguirei preencher. Também foi horrível perceber que a distância que separa o desconhecido do rejeitado é mínima, quase nula em alguns casos. Por outro lado, descobri um pai incrível, carinhoso, inteligente, companheiro e leal. Um homem de sinceridade rascante e generosidade espontânea. Corajoso e determinado naquilo que lhe parece correto e impiedoso com o que julga errado. É uma daquelas pessoas raras que consegue, com maestria, mesclar ousadia com um comedimento polido. Sobretudo, meu melhor amigo. Há ainda meus dedicados e temperamentais avós paternos, Edward e Catherine, meus tios tão díspares que nem parecem irmãos e a irmã do meu avô, a surreal tia Mildred, e seu educado e conservador marido, tio John. Quando estamos todos reunidos em uma casa, é quase impossível evitar catástrofes e hecatombes. Dizem que uma família é assim mesmo e, por falta de experiência, sigo acreditando. Também fiz grandes amigos nos últimos dois anos na Wachusett Regional High School, onde estudo. E como se tudo isso não fosse suficiente, agora tenho a Claire e essa é uma história delicada. Os próximos anos serão decisivos. Meus últimos na escola de Holden. Depois vou para uma faculdade em Worcester ou até mesmo em Boston. Sempre antecipando todos os passos, há meses meu pai perguntou que carreira eu queria seguir. No fundo eu tinha certeza de que não o desapontaria por não seguir a profissão que ele tanto ama, mas era inimaginável que fosse ficar tão feliz quando disse que eu queria ser um escritor. Tanto que me propôs um desafio: começar a praticar imediatamente. Disse que eu tinha um talento especial para narrativas. Comprou um pequeno caderno preto de capa dura e pediu que fosse rascunhando todas as ideias e propostas de histórias que eu gostaria de escrever. Uma espécie de reunião de sinopses. E foi o que eu fiz durante meses. Se eu não o desapontei com a escolha da carreira, acredito tê-lo desapontado quando lhe entreguei o caderno e permiti que lesse meus apontamentos. Todos os meus heróis imaginários vivendo realidades fantásticas, espadas em punho, cavalos voadores e cajados com poderes mágicos sucumbiram ao seu olhar apurado. Três dias após eu lhe entregar o caderno, ele decidiu expressar sua opinião enquanto estávamos na estrada de volta pra casa, no final da tarde daquela véspera de Natal, depois de acompanhá-lo no trabalho em Worcester e das incontáveis ligações de Daddy J, preocupado com nosso provável e incomum atraso: — Talvez não seja muito difícil explorar a criatividade na sua idade criando fantasias, histórias de superpoderes, universos paralelos ou outros planetas, ainda que sejam metáforas de uma realidade. Quantos não sonham acordados? Quantos não gostariam de ser super-heróis, extremamente fortes e velozes, capazes de realizar as mais incríveis proezas? Quantos não gostariam de ser divinos? A questão é que, por identificação de ambas as partes, os deuses vão ter sempre um lado humano e essa é a grande atração. Criar super-heróis é fácil. Difícil mesmo é humanizá-los. Então, se você quer escrever histórias fantásticas, ótimo. Mas acredito que o melhor caminho será praticar escrevendo algo simples, sobre pessoas normais, com a realidade que o cerca. E não pense que isso é uma tarefa sem custos. Talvez seja até mais difícil escrever sobre a simplicidade ao nosso redor. Que tal você tentar? Eu torci a boca e enruguei a testa. E ele imediatamente resumiu: — Os grandes mitos da ficção, os que realmente merecem destaque, não têm medo do inimigo. A grande batalha que travam é com sua própria fração humana. Com aquelas necessidades básicas do homem em sociedade, especialmente quando diz respeito ao amor, como carinho, beijos, sexo. Ele pode realizar proezas fantásticas, mas não consegue ser humano. E isso acaba nos fazendo sentir tão ou melhores que eles, pois sabemos que somos homens simples plenos, que, quando temos coragem e sabedoria, também somos capazes de feitos extraordinários. Ser divino talvez seja até simples demais. Difícil mesmo é ter a ousadia de ser humano. Pense nisso, Vullen. A propósito, é assim que meu pai me chama: "Vullen". Significa "rechear", "preencher algo", no idioma da minha terra natal. Pode parecer idiota, mas eu gosto quando ele me chama assim. Como sempre, ele tem a habilidade cirúrgica para tocar de forma simples e profunda nos pontos determinantes. Compreendi perfeitamente o que ele me disse, mas passei o resto da viagem em silêncio, com o rosto encostado no vidro do carro, admirando a paisagem do caminho e pensando em como tudo aquilo que antes tinha cores intensas, agora estava tomado pelo branco da neve. Mesmo sem vê-lo, eu sentia que meu pai me olhava de soslaio e sorria. Eu estava refletindo e ele sentia um prazer sobre-humano quando provocava em mim essa reação. Talvez esse fosse um dos seus superpoderes, nem sempre secretos. Já era noite quando chegamos à casa dos meus avós. Estavam todos na sala, milimetricamente decorada com os possíveis e imagináveis motivos natalinos. Por alguns instantes me deixei levar pela pequena locomotiva percorrendo sem parar a vila em miniatura ao lado da gigantesca árvore colorida e repleta de presentes ao redor. Depois olhei para todos, felizes e com aquele espírito de confraternização típico dessa época do ano. Mas eu sei que nem sempre foi assim e comecei a imaginar os caminhos que nos trouxeram até aquele momento. Num instante, veio o estalo: eis a história que eu preciso contar. A história da minha família. A história desses seixos rolados que buscam sempre se manter unidos em meio às águas turvas. Pouco antes da ceia, quando começamos a entrega dos presentes, meu pai, como um daqueles heróis fantásticos capazes de ler os pensamentos e prever o futuro, me deu um notebook e um minigravador digital de última geração. Disse que poderia ser útil para minhas próximas empreitadas. Ele nem imagina quanto. E então começaria a tarefa, de fato, mais difícil: ouvir cada um deles e contar a história desses divinos humanos que me cercam: a família Thompson. Mr. Tappertit, em Barnaby Rudge, diz que: "Há cordas no coração humano que seria melhor não fazer vibrar". Mas essas cordas vibraram. Então, vamos ao começo. E nada melhor que voltar três anos, quando ventos do sul e do leste se cruzaram em Holden e mudaram o destino de muitos...

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