— Boa tarde, Justin! — cumprimentou nominalmente Florence, uma baixinha simpática e espevitada, recepcionista do Val's Restaurant and Lounge, habituada à assídua frequência dos Thompson no estabelecimento, recebendo um sorriso como resposta. Ao perceber que ele estava acompanhado, estendeu a saudação ao outro cliente: — Boa tarde! Sejam bem-vindos! Vocês querem uma mesa? — Não! — precipitou-se Gabriel, encabulado. De imediato, recebeu um olhar meio sarcástico, meio interrogativo de Justin. Tratou de emendar: — Digo, queremos, sim. Mas não estamos juntos... — Como sempre, o restaurante está lotado nesse horário — disse Justin, percorrendo com os olhos as mesas ocupadas em seu campo de visão. — Me perdoem, mas no momento nós só temos uma mesa disponível — revelou Florence, em seu rápido raciocínio. Gabriel e Justin entreolharam-se. Havia no ar um misto de contentamento, medo e desejo. O destino, por sua irrefutável existência, exibia-se patente ao delinear aquele reencontro e agora parecia dominar todos os movimentos daquele cenário, como que os conduzindo à aproximação. — Por favor, pode ficar com a mesa — disse Gabriel, em genuína civilidade, mas tomado em seu íntimo pela expectativa de que sua oferta fosse negada. — Não. De forma alguma — rejeitou Justin, coração à boca e mãos metidas nos bolsos da calça jeans para esconder o visível tiritar e aquecê-las, geladas pelo suor que vertiam sem cessar. — Fique você com a mesa — desviou o olhar para baixo e depois para a grande porta de saída. — Não se preocupe. Eu posso comer em outro lugar — insistiu Gabriel naquela falaciosa fleuma. Sagaz observadora, Florence compreendeu que era necessário tomar alguma medida para solucionar aquele impasse e abrir um novo flanco capaz de aliviar o visível falso mal-estar. — Você é novo aqui na cidade, não é mesmo? — questionou Florence, certa da resposta que receberia, não apenas pelo inglês carregado, mas pela aparência daquele estrangeiro. — Sim. Estou passeando — revelou Gabriel, entre o chiste da recepcionista e o olhar atento de Justin. — Vim conhecer Holden por indicação de uma amiga. Vou passar o final de semana. Acabei de chegar. Ela também me sugeriu parar aqui para comer. Disse que vocês têm um salmão fantástico! — Espero que goste da nossa pequena cidade... — Justin emanou um sorriso brando, pacífico. "Ele vai passar o final de semana aqui!", era o que realmente dizia seu pensamento, em festejo. — Tenho certeza de que você vai gostar! — afirmou Florence, categórica. — Então, já que é sua primeira vez, por favor, fique com a mesa — insistiu Justin, já com um tom de voz abrandado. — De jeito nenhum! Eu posso esperar vagar outra... — Por que vocês não dividem a mesa? — interveio a recepcionista, certa de que, se não o fizesse, a querela poderia ser prorrogada, desnecessariamente, por longo tempo. — Não é mais simples assim?! Algum problema pra vocês? — E continuou, assertiva: — Assim, Justin, você pode fazer companhia e apresentar a cidade ao... ao... — Gabriel. Meu nome é Gabriel. — Ao Gabriel — concluiu, estendendo a mão em cumprimento. — Meu nome é Florence. É um prazer conhecê-lo. E seja muito bem-vindo a Holden e ao Val's Restaurant! — Obrigado. O prazer é todo meu — sorriu, cumprimentando a moça. Virou-se para Justin e propôs um desfecho: — Bom, por mim, podemos dividir a mesa. Isso se você não se incomodar. — De forma alguma! Vamos lá! — atravessou Justin, mal deixando concluir a frase. "Obrigado, meu Deus!", agradecia em pensamento. Estendeu a mão a Gabriel e apresentou-se: — Meu nome é Justin. Justin Thompson. É um prazer! — Venham comigo, eu vou levá-los à mesa — disse Florence, deixando a bancada e indicando aos dois o caminho para o salão principal. Antes que os primeiros passos fossem dados, um forte e raríssimo vento vindo do Leste atingiu a porta robusta do Val's Restaurant que, ao ser arremessada na parede, estilhaçou o vidro central. O barulho foi tão grande que não apenas assustou os três mais próximos à entrada, como todos que estavam no interior do restaurante. Alguns chegaram a levantar de seus lugares para ver o que estava acontecendo. Além de uma finíssima poeira, aquele vento frio fez entrar as primeiras folhas amareladas do outono norte-americano, que foram se misturando aos estilhaços de vidro no chão. O céu já se toldava em nuvens, furtando os raios de sol que insistiam em aquecer aquele início de tarde. No ar era possível sentir o perfume úmido e denso de chuva, prenúncio de tempestades. Foi impossível não observar quando aquela mulher deixou no estacionamento o pequeno Chevy Aveo azul alugado, abriu a porta e atravessou o exíguo saguão do Eagle Lake Hotel, à margem da Main Street, entre a região central de Holden e o distrito de Jefferson. O atendente Seamus ajeitou seus óculos com lentes espessas, próprios para o elevado grau de sua miopia, na tentativa de não perder um único movimento. Tinha pouco mais de trinta anos, estatura média, corpo aprumado, com delicadas curvas, e a pele cujo branco amarelado aproximava-se da cor de seus cabelos, com suaves ondas, cortados na altura do pescoço. Apesar do semblante circunspecto, seus olhos grandes e salientes, realçados por extensos cílios, produziam uma perigosa atração, uma espécie de fitar de Górgona. Petrificado, Seamus tardou a perceber que a mulher questionava-o quanto à disponibilidade de um quarto para o final de semana. Tampouco se deu conta de que ela estava acompanhada de um garoto de doze anos que, dada a semelhança física, certamente seria filho dela. O atendente só despertou quando o menino cravou a mão na sineta sobre o balcão. Sybille Genezen e seu filho, Matthew, estavam chegando de uma exaustiva viagem desde Turnhout, no norte da Bélgica, cidade próxima à fronteira neerlandesa. Fazer as malas e partir com sua cria para essa jornada até Holden foi a decisão mais difícil de sua vida. Tinha certeza de que isso implicaria deixar cair por terra todo o seu propósito de independência e de jamais deixar que seu filho colocasse os olhos no pai, aquele homem por quem se apaixonara, fizera planos e que simplesmente desapareceu numa manhã pálida e gelada, no inverno de 1996. Grávida de poucas semanas, ela jamais compreendeu o que acontecera. Sua vida nunca foi fácil. Ser abandonada por aquele homem não era sua primeira experiência de desamparo. Não chegou a conhecer a mãe, que morreu durante o parto. Por instinto, sentia que seu pai não amanhecia um único dia sem alcançar-lhe com um olhar de incriminação, como se fosse dela a culpa pela frágil saúde de sua esposa. Quando Sybille completou seis anos de idade, seu pai a deixou com uma vizinha e atravessou o Mar do Norte em direção à Noruega, em busca de um emprego na indústria pesqueira. "Ele sempre fedeu a bacalhau!", era uma das poucas recordações daquela mulher sobre seu pai. Se hoje estava morto ou vivo, ela não sabia. Ele jamais voltou ou deu notícias. Simplesmente desapareceu. Aquele novo abandono lhe trouxe angústia e tristeza. Mas sua alma estava calejada pelos episódios passados. Poderia ter optado por realizar um aborto, já que a legislação belga permite a interrupção de uma gestação com até três meses por razões sociais e econômicas, lei que levou o então rei Balduíno I, católico convicto, a renunciar às suas funções de chefe de Estado por trinta e seis horas, em março de 1990, para não ter que sancionar a decisão do Parlamento da Bélgica. Mas Sybille assumiu com dignidade a gravidez e, no outono de 1996, Matthew veio ao mundo: o rosto quadrado do pai, salpicado de penugens tão claras que desapareciam sobre a pele alva, como a mãe; cenho fechado e olhos cor de violeta. Herdou da vizinha que a criou uma fabriqueta de chocolates artesanais, considerados os melhores de toda a região de Flandres. Ao contrário da fedentina que lhe recordava o pai ausente, suas mãos exalavam um perfume adocicado. Sua casa cheirava a cacau e baunilha. Nas tardes úmidas de inverno, qualquer um que passasse pelo bairro era dominado pelo aroma do chocolate. Quase sempre untava os próprios mamilos com a manteiga de cacau durante o período de amamentação do filho, o que descobriu ser um eficiente método para evitar fissuras. Olhava para aquele bebê de boca brilhante, besuntada, e sorria. Jurou categoricamente que Matthew jamais colocaria os olhos no pai, que certamente nem sabia de sua existência. Também prometeu que ele jamais saberia. No entanto, juras e promessas são argumentos de validade limitada. Estarão sempre sujeitas às circunstâncias da vida e reféns, em larga escala, do imponderável. Em uma década, Sybille vivenciou a queda vertiginosa de sua produção, aniquilada pelo constante declínio econômico europeu e massacrada no mercado pela fusão de grandes fábricas de chocolate no país. O produto final de seu trabalho era caro demais para concorrer com as indústrias da região e para um poder aquisitivo europeu cada vez menor. Em seu último ano de funcionamento, acumulou dívidas, quase perdeu sua casa e decidiu que o melhor a fazer era fechar as portas. O ano seguinte foi ainda pior. Ela não tinha formação acadêmica e acabou tendo que aceitar trabalhar como caixa do pequeno mercado no final da rua. Matthew já era um adolescente e gerava todo tipo de demandas, fossem pessoais, fossem relacionadas à sua educação. A maioria delas, Sybille não conseguia ofertar ao filho. Viu-se num beco sem saída. Toda aquela precariedade a levou a repensar e recuar das antigas juras. Ela sabia o nome do pai de Matthew. Não o revelava nem para o garoto. Jamais procurou informações sobre ele. Mas não foi difícil encontrá-lo. Uma busca rápida na internet a levou ao site da ETS, com sede em Worcester, nos Estados Unidos. Ficou doze anos sem ver aquele rosto e quando o avistou dentre os proprietários daquela grande empresa de comércio de automóveis, veio um misto de raiva e rancor, uma sensação de que fora lesada, salpicada de desastroso saudosismo. Decisões tomadas sob essas chamas tendem à ebulição de tragédias. Pouco afeita às tecnologias, Sybille anotou o endereço da sede da empresa e na semana seguinte postou uma extensa carta, relatando a sua jornada e a de seu filho naquela última década. Sem pestanejar, pediu ajuda. Aguardou sôfregos meses por uma resposta, que só chegou à primeira semana de julho. Não veio por carta. Simplesmente bateu à sua porta. Não foi exatamente o que ela esperava e, por sorte, Matthew não estava em casa. Não a interessava ouvir discursos falaciosos ou qualquer tentativa de explicação por aquele abandono do passado. Precisava apenas de ajuda para criar o filho e esse era seu único pensamento. Ele tem dinheiro suficiente para não permitir que Matthew passe por mais dificuldades e privações, tinha isso como definição última. No entanto, considerou verdadeiramente indecorosa a proposta que ouviu: vinte mil euros para que ela nunca mais procurasse qualquer um dos Thompson e para que nunca exigisse qualquer reconhecimento de paternidade. Ela jamais esperou ou desejou o registro paterno para o filho. A estrada da vida, muitas vezes, torna as pessoas frias o suficiente para distinguir os sentimentos mais elementares das negociações mais impróprias. Sybille julgou que o valor supostamente ofertado pela manutenção daquele segredo não era suficiente, encerrou a conversa e o expulsou de sua casa. Se, por um lado, aquilo era a manifestação de sua contrariedade, por outro, também sabia que estava em um jogo, e aquela ação fazia parte de suas estratégias. Naquele momento, julgamentos de caráter não estavam entre as suas preocupações. O que ela mais temia era ver o filho passar fome, frio ou qualquer outra necessidade. No dia seguinte, ele voltou a procurá-la. Não tinha uma proposta melhor a fazer. Chegou a insinuar que Matthew não fosse um legítimo Thompson. Imaginou que aquela mulher que estava ali negociando o futuro do filho não tivesse qualquer caráter, fosse uma promíscua. Por pura ignorância, não tinha a compreensão de que até as mães mais impolutas são capazes de barbaridades inimagináveis em nome de seus filhos. Sybille sentiu-se ultrajada. Novamente colocou aquele homem para fora de sua casa e encerrou definitivamente o diálogo. Naquele momento, percebeu que não teria outra saída a não ser tomar a decisão mais difícil de sua vida. Seria um passo delicado, mas o único que conseguia vislumbrar naquele momento. Passou uma noite inteira revelando a Matthew toda a verdade sobre seu pai e tudo o que estava acontecendo. "Ele já tem doze anos, precisa compreender", concluiu. Sacou o pouco dinheiro que tinha no banco e pegou outra parte emprestada com seu amigo, dono do mercado onde trabalhava como caixa. Naquele início de outubro, partiu com o filho para Bruxelas e de lá tomaram um avião para Boston, nos Estados Unidos. Foi difícil locar um automóvel, mas os homens são tolos e ingênuos o suficiente para abrir qualquer exceção diante do charme de uma bela mulher. Também não foi difícil descobrir, ao chegar à sede da ETS, em Worcester, que seu destino deveria ser, na verdade, a pequena Holden, a alguns quilômetros dali. Definitivamente, agora era sua vez de, com Matthew, bater à porta da casa dos Thompson. Preencheu o formulário de entrada no Eagle Lake Hotel sob o olhar atento de Seamus, o recepcionista com óculos que mais pareciam fundos de garrafa. Quando chegou ao quarto, sentiu o cheiro de carpete mofado, ainda que o ambiente aparentasse estar limpo e organizado. Provavelmente, eram os primeiros hóspedes a dormir naquelas duas camas em meses. Matthew estava exausto e, logo após o banho, caiu em sono profundo. Sybille alcançou a lista telefônica e, em seguida, discou o número da casa de Edward Thompson. A janela de seu quarto dava-lhe uma vista da pequena Kendall Road e, ao fundo, a Wachusett Regional High School. Ouvia o telefone chamar em seu destino e admirava a paisagem quando um forte vento soprou, cegando-a momentaneamente com a fina poeira e trazendo muitas folhas amareladas para dentro do quarto. Viu as nuvens se agigantando no céu, anunciando uma tempestade. — Alô! — Sybille ouviu a voz de uma mulher. Apesar de confortavelmente instalados na mesa tipo cabine ao final do grande salão do Val's Restaurant, Justin e Gabriel permaneceram em silêncio por algum tempo. O primeiro permaneceu escondido atrás do cardápio; o segundo fingia-se perdido na observação daquele ambiente aconchegante, com arranjos florais e objetos decorativos variados. Suas cabeças estavam coroadas por fotos artísticas de copos-de-leite e lírios cor-de-rosa. No ar taciturno, partículas de interação eram trocadas quando seus olhos se encontravam. "O que dizer nesse momento?", era a pergunta para a qual ambos buscavam resposta. Tantas coisas podem ser ditas, há tanto a perguntar. Mas quais são as melhores palavras para abrir o caminho do conhecimento, da aproximação? A quietude é simbólica. À mesa, dois homens dominados pela força ancestral das emoções, aquelas que nos fazem reconhecer, desde a primeira vista, as pessoas que podem nos acompanhar pelo resto da vida. Só ouviam o uivo do vento que ousava entrar pelas pequenas frestas abertas. Mas era preciso fazer algo. Não era possível permitir outro desfecho como o que ocorrera no Logan Airport, havia três meses. Justin quebrou o silêncio: — Bom, Gabriel, quer dizer que você veio fazer turismo em Holden? — Sim. Minha orientadora na residência médica indicou a cidade — revelou Gabriel, ainda teso. — Disse que eu tinha o perfil desse lugar e que aqui eu iria recarregar as baterias. — Se gosta de lugares pacatos, tranquilos, você está no lugar certo — sorriu Justin, simpático. E questionou: — Então você é médico? E está fazendo sua especialização aqui nos Estados Unidos? Porque eu me lembro do nosso primeiro encontro e de você ter dito que era brasileiro. — Você atropelou minha bagagem! — Gabriel abriu um sorriso saudoso, relaxando a tensão. — Dessa parte é melhor esquecer! — Eu me formei em medicina no Brasil e estou fazendo residência em cardiologia no UMass, em Worcester, onde estou morando. — Mas pretende voltar para o seu país quando terminar ou vai continuar morando por aqui? — Ficar aqui é o que desejo e sempre foi o meu sonho! Um garçom se aproximou da pequena abertura, única forma de acessar aquela mesa, em estilo cabine: — Boa tarde, senhores! Querem fazer seus pedidos? — Eu vou querer o de sempre, Ernest — pediu Justin, enquanto o garçom sacava o palmtop do bolso e registrava as opções. — Black Diamond Sirlion e uma Coca-Cola com muito gelo. — Pode deixar, sr. Justin! — e Ernest voltou-se para Gabriel. — E o senhor, o que vai pedir? Quer alguma sugestão? — atento para o fato de que o rapaz percorria o cardápio com os olhos. — Me disseram que vocês preparam o melhor salmão de toda Nova Inglaterra! — Pode apostar que sim! — confirmou Justin. — Ginger Salmon — assentiu o garçom. E especificou: — Filé de salmão cozido, com gengibre cristalizado e sementes de gergelim, colocados no topo de um medley de vegetais asiáticos com molho de mostarda Dijon. — Parece fantástico! — disse Gabriel, sentindo a boca salivar. — É esse que eu quero! — Uma excelente escolha, senhor. E para beber? — Também vou querer uma Coca-Cola. — Perfeito! Se precisarem de mais alguma coisa, estou à disposição. Com licença... — despediu-se Ernest, deixando-os novamente a sós na mesa. Justin e Gabriel não precisavam mais de silêncio e logo retomaram a conversa. — Você está morando em Worcester? — perguntou Justin que, ao recostar naquele sofá curvo e tentar cruzar a perna, sem querer tocou a panturrilha de Gabriel com a ponta do pé. — Sim... — respondeu Gabriel, que ao sentir o toque e, numa fração de segundos, conseguiu perceber cada vértebra de sua coluna, findando por lhe arrepiar a nuca. — E está gostando? Worcester é uma cidade interessante... e a Universidade de Massachusetts é uma das melhores dos Estados Unidos. — Eu estou gostando muito! E você, faz o que da vida? — Sou chefe executivo da empresa da minha família... comércio de automóveis — revelou Justin, sem qualquer vaidade extremada. — A sede é em Worcester. — Mas você mora aqui em Holden, certo?! Vai e volta todos os dias? — Nem sempre. Às vezes durmo no escritório, como ontem, por exemplo. Mas, de toda forma, é muito perto... e a viagem é agradável. — Isso é verdade! Uma bela subida. A estrada é um pouco estreita, mas a paisagem faz valer tudo! — Com certeza. Daí, todos os sábados eu subo nesse horário e sempre passo aqui para almoçar. — Instintivamente, Justin dava pistas de seus movimentos. Gabriel interrompeu a conversa, perguntou onde ficava o banheiro, pediu as devidas desculpas e licenças e para lá seguiu, pretendendo ser o mais breve possível. Tão logo deixou a mesa, Justin percebeu que uma pedra lisa e escura tinha caído do bolso de seu companheiro. "Uma pedra do reservatório?!", questionou-se, alcançando-a sobre o assento e colocando-a na mesa. Pouco mais de cinco minutos depois, Gabriel estava de volta. — Essa pedra é sua? — perguntou Justin. — É sim. Nem percebi que ela tinha caído! — É do reservatório, não é?! — Eu fiquei um longo tempo parado lá hoje. Queria uma recordação. Sei que é uma idiotice, mas eu coleciono essas pedras — reconheceu Gabriel, deixando-a sobre a mesa, disponível à contemplação. — Elas são lindas! De uma cor tão intensa... — afirmou Justin, refletindo. — Ainda que a água dos reservatórios seja cristalina, elas parecem turvas por causa da cor dessas pedras nas margens e no fundo. — Eu percebi. É incrível! — concordou Gabriel. — Até agora eu só tinha pedras claras, muito comuns nos rios e lagos brasileiros. A maior parte da minha coleção vem do riacho que corta o sítio que foi dos meus pais. — Seus pais ficaram no Brasil? — Meus pais morreram... — Gabriel sentia o coração apertar sempre que pronunciava essa frase. — Oh! Meu Deus... sinto muito... eu não queria... — Tudo bem. Não precisa se desculpar. — Você tem irmãos? — Não. Sou filho único. Meus pais morreram há quase três anos. Portanto, fiquei só. Por um tempo fiquei sem saber o que fazer, sem chão. Depois decidi buscar a realização dos meus sonhos e anseios pessoais e profissionais. Quando fui admitido no UMass, não pensei duas vezes... vendi o sítio e aqui estou! — Espero que você seja muito feliz aqui... — Justin mirou profundamente os olhos de Gabriel. — Em todos os sentidos. — É o que eu desejo também... — correspondeu com um singelo sorriso, ainda que sentindo um leve e delicioso constrangimento. Edward estava branco feito cera de vela. Quando recostou na cadeira de seu escritório doméstico, parecia não ter uma única gota de sangue circulando no rosto. Pegou o telefone e ligou para a casa de Ethan. — Sybille está em Holden — disse, em tom grave. — Ela está aqui? Como isso é possível? — questionou Ethan, cuja voz estremecida era perceptível através do telefone. — Ela foi até aí? — Não — Edward fez uma pequena pausa. — Ainda não. Mas ela ligou. Está no Eagle Lake. — E agora, o que vamos fazer? — Ainda não sei. Mas preciso pensar em algo. — Pai, eu vou até lá... vou tentar negociar com ela. — Ela não me pareceu disposta a negociar. — Ela não tem querer! — Vamos com calma, Ethan! — Edward passou a mão pelos cabelos semilongos, entremeando os dedos por aquela quase totalidade de fios brancos. — A questão é urgente e perigosa. Mas é justamente nesses momentos que precisamos manter todas as guardas e cautelas — coçou a barba, como de hábito quando estava tenso. — Pai, nós não podemos esperar ela agir. — Ela já agiu, meu filho. Ela já agiu... Está aqui! — Eu vou tomar um banho rápido e vou até aí. Daí pensamos juntos no que podemos fazer. — Tudo bem. Eu te aguardo. Edward desligou o telefone e foi até a grande bay window do ambiente. Avistou Catherine no jardim, que lhe acenou, sorridente e com os cabelos mexidos pelo vento forte. Correspondeu ao aceno da esposa enviando um beijo. Olhou para o céu e percebeu a grande tempestade que estava por vir. Quem observava aqueles dois homens almoçando no Val's Restaurant and Lounge jamais poderia imaginar que eles mal se conheciam. Naquelas duas horas, falaram sobre suas vidas, dividiram conceitos e dúvidas, brincaram com suas realidades, deram risadas de suas ficções. Descobriram dúzias de afinidades. Quando foram pagar a conta para sair, já estavam completamente à vontade. Não eram mais simples desconhecidos, aproximados por circunstâncias. Eram dois homens especialmente unidos pelo destino. Na saída, um eficiente vidraceiro assentava uma nova lâmina espelhada na porta. Aquele raro vento leste continuava soprando, frio e forte. O céu, completamente tomado por nuvens escuras, deixava cair as primeiras gotas de uma previsível tempestade. Justin e Gabriel sequer sentiam os pingos. Caminharam lentamente até seus carros, estacionados um ao lado do outro. — Espero que tenha gostado do almoço — disse Justin. — Adorei! — declarou Gabriel. — É realmente um ótimo restaurante e o salmão estava espetacular! Quero voltar aqui mais vezes. — Também espero que tenha gostado da companhia... — Foi ótima! Todas as vezes que eu voltar aqui, espero poder contar com ela — Gabriel sorriu abertamente. — Mas com uma condição... que você me deixe pagar a conta. O que você fez não é justo. — Isso não tem nada a ver com justiça. É a primeira vez que você vem a Holden... e espero que seja realmente apenas a primeira de muitas... e foi a minha oportunidade de fazer o que eu deveria ter feito há três meses, no Logan. — Naquele dia, eu voltei para tentar falar com você, mas acabei desistindo. Quando eu retornei ao saguão, você estava abraçando uma pessoa e eu não quis interromper. — Gabriel disfarçou seu constrangimento ao tocar no assunto, abrindo a porta de trás do carro e sacando um casaco de couro marrom, que logo vestiu. — Era meu irmão! — revelou Justin, num tom de quase desculpas, seguido de uma aberta risada, compreendendo a interpretação equivocada. — Seu irmão?! — Gabriel sentiu um alívio sobrenatural. Durante todo o almoço, teve vontade de perguntar quem era aquele homem do Logan Airport, mas teve medo da resposta. Agora, com aquela surpreendente revelação, sentia seu coração liberto, em franca expansão. "Eu sou um idiota mesmo!", pensou, esboçando um sorriso. — Eu e meu pai fomos a Boston naquele dia para buscá-lo. Ele estava chegando de uma viagem de negócios à Europa. — Sem se dar conta do atrevimento e, de alguma forma, já se sentindo muito próximo, Justin tomou a liberdade de arrumar a gola do casaco de Gabriel que, ao vestir, não percebeu que um dos lados tinha ficado dobrado para dentro. E continuou: — Você já sabe aonde vai se hospedar aqui em Holden? — Antes de vir, eu pesquisei na internet e vi que há um hotel muito simpático na rua principal. Eagle Lake Hotel — disse Gabriel, visivelmente ruborizado. — É um lugar tranquilo — afirmou Justin, divergindo em pensamento sobre a simpatia do Eagle Lake. — É perto daqui. Você vai pegar a Reservoir Street e mais adiante, no cruzamento com a 122 A, entre à esquerda. Seguindo em frente, logo você avistará o hotel. O nome estará visível à distância. — Bom, eu vou indo então — Gabriel finalmente percebeu os pingos de chuva, agora mais grossos e constantes. — Obrigado pelo almoço... pela companhia... pelo papo... — Por nada. Foi um prazer conhecê-lo — Justin estendeu a mão para cumprimentá-lo. Não queria se despedir, mas era necessário. Tão logo Gabriel abriu a porta e entrou naquele Toyota Yaris branco, por impulso sugeriu: — Olha, se você quiser, eu posso te mostrar a cidade mais tarde! Quer sair para beber alguma coisa? Ou você já tem outro compromisso? — Seria ótimo! Mas eu não quero incomodá-lo... — De forma alguma. Será um prazer! Podemos dar uma volta, eu posso te mostrar alguns lugares e depois podemos jantar, tomar um vinho. O que acha? — Se a chuva permitir, será ótimo! — A que horas eu pego você no Eagle Lake? — Não sei. Qual o melhor horário pra você? — Às oito da noite, pode ser? — Perfeito! — Espere um minuto — Justin tirou a carteira do bolso e dela sacou um cartão de visitas. — Tome o meu cartão. Este é o meu celular — com a caneta que buscou em um dos bolsos da jaqueta, circulou no cartão da ETS o número de seu telefone móvel. No verso do cartão, escreveu outro telefone. — Este é o número da minha casa. Qualquer coisa é só ligar. — Ótimo! — Gabriel colocou o cartão no bolso interno do casaco. Ligou o carro e não percebeu sua indelicadeza ao não retribuir Justin com seus contatos. Tão logo a ignição foi acionada, o rádio do automóvel instantaneamente ligou na estação em que estava sintonizado desde a saída de Worcester. Ouviram claramente o trecho de uma música: "I'm a lucky man, to count on both hands the ones I love. Some folks just have one, yeah, others, they've got none. Stay with me... Let's just breathe...". Era o início de "Just Breathe", música do Pearl Jam. — Combinado então. Oito da noite. Te vejo mais tarde! — Vou esperar... Justin ficou algum tempo olhando Gabriel partir. Por um momento lembrou exatamente o que sentiu naquele fim de tarde na saída do Logan Airport, vendo-o desaparecer na avenida em meio aos outros carros, sem saber se algum dia voltaria a encontrá-lo. Agora sentia o extremo oposto. Estava feliz. Sabia que em algumas horas iria vê-lo novamente. Entrou em seu Hummer e, imediatamente, ligou o rádio, em rápida pesquisa para encontrar a estação que estava tocando Pearl Jam. Era fã da banda e daquela música, perfeita para o momento. Tão logo sintonizou, a canção invadiu o carro: "Did I say that I need you? Did I say that I want you? Oh, didn't I'm a fool, you see. No one knows this more than me...". Ficou por um tempo ouvindo aquele som. Em um reflexo natural, viu quando o Camaro vermelho de Ethan cruzou a Reservoir Street, indo em direção à casa de seus pais, em alta velocidade e jogando água para os lados em sua trajetória. "Quando ele vai aprender a não correr tanto?", pensou Justin. "Ethan dirige como se o mundo fosse acabar amanhã!" Mal concluiu o pensamento e, em meio ao crescente chuvoso, avistou Florence na porta do restaurante, acenando expansivamente e chamando seu nome. A garota abriu o guarda-chuva e correu até o carro, onde Justin a esperava com o vidro entreaberto. — Ei, Justin! Um de vocês esqueceu isso aqui em cima da mesa. — Florence mostrou a pedra lisa e escura que Gabriel pegara no reservatório. — Essa pedra é sua? — Ah! É do Gabriel — lamentou Justin, pegando-a para si. — Mas pode deixar comigo que a entrego hoje à noite. — Vocês têm um encontro? — sua curiosidade patente impedia qualquer discrição. — Não, Florence! Quer dizer... sei lá! Vou mostrar a cidade a ele... talvez jantar... ainda não sei ao certo. — Ele é lindo, Justin! — vibrou a atendente do Val's Restaurant, conhecida por sua tagarelice e franca inconfidência. — Quando vocês entraram pela porta, eu vi na hora que tinha tudo para dar certo! — Tudo o quê?! — Ora... tudo! Vocês dois... — Não tem nada entre nós dois. — Ainda, Justin! Ainda! — Florence, você é impossível! Eu vou pra casa... Obrigado por me trazer a pedra. Mais tarde eu a entrego ao Gabriel... E, olha... não saia comentando sobre isso, o.k.?! — Justin tinha certeza de que esse era um pedido absolutamente inútil. Conhecia aquela garota de longa data. Gostava dela. Mas sabia que sua língua chegava sempre antes a qualquer lugar. — Está vendo?! Eu sabia! Eu vi imediatamente que tinha química! E vocês pareciam muito à vontade almoçando... — denunciou-se Florence quanto ao fato de ter passado todo o tempo a vigiá-los no restaurante. Mas tratou de baixar o tom. — Pode deixar... eu não vou comentar nadinha... com ninguém! — e concluiu, resgatando a azáfama: — Mas que vocês combinam, combinam! E muito! — Boa tarde, Florence! — despediu-se Justin, sorrindo e subindo a janela do carro. Já estava suficientemente respingado, fosse de chuva, fosse dos perdigotos daquela falastrona. "Florence e tia Mildred formariam um belo par para uma festa chata!", brincou em pensamento. A atendente ficou ali observando Justin partir em seu carro, descendo à direita na Reservoir Street e sumindo na paisagem. — Hum?! Eu duvido que essa história não vá dar certo. Eles são perfeitos um para o outro! — Florence parecia estar saboreando intimamente aquela história. E, quem muito gosta de falar, sustenta-se bem até em monólogos debaixo de chuva. Concluiu, buliçosa: — Um dia eles vão me agradecer por ter mentido e colocado os dois juntos na mesma mesa, com outras três desocupadas! — Ei, Florence! — gritou Ernest, da porta do Val's Restaurant. — Vai ficar aí fora, na chuva, falando sozinha? Tem muito trabalho aqui dentro! — Eu já vou, Ernest! Já estou indo! Ah! Esses homens... não entendem nada de romance!