Cada alma, em seu universo isolado, busca refúgio estabelecendo algum distanciamento da realidade imposta. Talvez essa seja a melhor definição para o comportamento de toda a família Thompson nos meses seguintes ao casamento de Justin e Gabriel. O casal e seu filho Matthew se entocaram na casa do Pine Hill e estavam vivendo aquele momento fundamental de descoberta das relações. Não havia espaço para os problemas familiares. Apesar de todo o passado catastrófico, o garoto passou bem por seu primeiro ano na Wachusett Regional High School. Suas notas finais foram excelentes, fez amigos e, ainda que com o sotaque europeu carregado, parecia um distinto cidadão de Holden desde o nascimento. Continuava a ter aulas de violão e desde a leitura do diário deixado por sua mãe, escrever passou a ser sua obsessão. Escrevia muito, sempre. Escrevia sobre tudo. Gabriel concluiu sua especialização em Cardiologia e foi imediatamente contratado pelo UMass. Acalentava o desejo de ter seu próprio consultório, mas o volume de trabalho parecia ter triplicado desde que sua amiga, e agora ex-tutora, Nancy Taylor assumira a direção da Clínica do Coração do hospital. Eles pretendiam implantar um novo modelo de gestão, mais humano, e isso demandava esforço e dedicação quase exclusivos. Mas o médico também aprendeu a valorizar o tempo de folga de sua atividade profissional. Agora tinha um marido, um filho e uma casa enorme que precisavam dele tanto quanto os pacientes infartados. Agora tinha uma família de verdade. O declínio da economia americana teve efeitos reais sobre a ETS, e Justin passou o restante dos meses de 2010 tentando conter a queda vertiginosa na venda de automóveis. Além disso, seguiu observando de perto as atividades suspeitas de Ethan e John nas filiais. Ao lado da assessora Emma, plantou armadilhas, colocando sob a responsabilidade do irmão e do tio as concessionárias com maior prejuízo no primeiro semestre. Mas não poderia fazer qualquer suposição ou acusação sem ter provas factuais das fraudes. E para isso precisava de tempo e análise. As ratoeiras já estavam armadas e agora era uma questão de ter paciência. Se Pine Hill era a residência de uma família em construção, a casa dos Thompson na Tanya Drive caminhava em sentido oposto, desconstruindo-se. Edward fingia estar pleno e feliz, mas essa versão era contrariada pelo aumento exponencial no consumo de uísque. Passava dias enfurnado no escritório, em uma espécie de depressão, sentado na cadeira e aguardando algum salto no ponteiro dos relógios da vida. Se alguém entrava, ele punha-se à farsa de estar lendo relatórios, enviando e-mails ou até lendo os jornais. A verdade é que sua vida estava se resumindo a um copo na mão. Catherine embarcou para outro planeta. Sua atenção ao marido era quase nula. Intensificou sua dedicação aos jardins da casa na cidade e em Pine Hill. Descobriu em Matthew uma experiência completamente nova e, com ele, passava horas sentada no gramado ou no grande deque, contando histórias e dividindo boas gargalhadas. Gostava da companhia do garoto e sentia a recíproca verdadeira. Como combinado, passou a acompanhar Helen em demoradas sessões com um psicanalista e uma psiquiatra, três vezes por semana em Worcester. Inventaram um curso de pintura para não levantar quaisquer suspeitas na família, mas sabiam que Mildred estava com uma pulga atrás da orelha. Ethan também sentiu mudanças expressivas na mulher, mas não teve a sensibilidade de perceber que ela estava em tratamento médico. Preferiu acreditar que a arte, por si só, estava curando Helen de males que nem ele tinha conhecimento. Dizem que os homens são facilmente ludibriados, mas, na verdade, eles é que parecem optar pelo engodo. Enganado também permaneceu o professor Christian Taylor. Depois de flagrar toda a conversa entre Nicole e Thomas no estacionamento da WRHS, em vez de tentar um diálogo franco e aberto sobre a relação, decidiu partir para uma série de adulações temerárias, disfarçadas de galanteios românticos. Sob essa máscara, passou a adotar uma postura possessiva e centralizadora, tal qual um ditador prestes a ser deposto. O carro de Nicole parado na garagem durante um mês inteiro dá a dimensão desse controle. Christian buscava e levava a namorada aonde quer que fosse. Termo equivocado este: passarinho de estimação. Não é possível conceber que alguém tenha qualquer estima real por algo que precisa ser aprisionado. O amor verdadeiro exige liberdade. Nicole já começava a sentir a estreiteza da gaiola. Em outra prisão íntima, Catherine tentava oprimir as águas revoltas provocadas pelo reaparecimento de Jeffrey. Ela nunca soube quem teria resgatado seu amor do passado. Ele disse ter lido a notícia do casamento nos sites dos jornais The Landmark e The Daily Holden, sem tê- la convencido por completo. O que não foi dito é que Nicole havia enviado, secretamente, o convite de casamento, dois dias após ter lido as correspondências antigas entre sua mãe e o rancheiro de Middletown Springs, encontradas sob o piso do sótão na casa de Pine Hill, durante as primeiras arrumações para a festa e para a mudança de Justin e Gabriel. Parece impossível duas pessoas ficarem quase quatro décadas sem se ver e, quando se reencontram, apenas um olhar faz os corações palpitarem com aquele frescor típico dos vinte anos. Naquele dia não trocaram muitas palavras. Apenas o suficiente para resgatar também o velho hábito da troca de correspondências. Não mais pelo correio. Agora se falavam com frequência por e-mail, o pombo eletrônico bem mais seguro. Assim é o coração, sujeito às intempéries. Ele tem armadilhas capazes de corromper qualquer inteligência. Por sua natureza, o amor não produz certezas. — Gabe, onde vocês estão? — perguntou Justin em sua enésima ligação naquele início de noite, véspera de Natal. — Daddy J, nós já estamos chegando... — respondeu Matthew. O celular de Gabriel estava com o Bluetooth ativado e conectado ao Citroën C4 Aircross que comprara recentemente. — Meu amor, estamos na Reservoir Street. Daqui a pouco chegamos em casa — disse o médico. — Considerando que vocês ainda vão ter que chegar aqui e se arrumar, nós vamos nos atrasar para a ceia de Natal... Mamãe vai ficar furiosa! — continuou Justin, em tom chavão dos maridos. — Justin, nós não vamos nos atrasar — afirmou Gabriel, categórico. — Mas também não posso andar mais rápido do que já estou. A neve que caiu na estrada a lubrificou como KY! — Gabe, eu não quero que corra! É perigoso demais! — Justin depois falou ao filho: — Matt, não deixe seu pai correr, ouviu?! — Na verdade estamos indo devagar até demais — respondeu Matthew, enfadado. — Não estamos "indo devagar até demais" — Gabriel discordou em deboche. — Isso aqui não é a vigésima quinta continuação de Velozes e furiosos! — O.k., mocinhos! Estou esperando vocês em casa! — Te amo, daddy J! — disseram, em uníssono, Gabriel e Matthew, iluminando o carro com seus sorrisos. Ao contrário do calor emanado dentro do Aircross, o frio intenso daquele final de dezembro de 2010 tingiu de branco as florestas de bétulas, áceres e pinheiros ao redor de Holden. Gabriel tinha descido a Worcester para uma visita especial aos seus pacientes no UMass, no que foi carinhosamente acompanhado pelo filho, Matthew. Tão logo desligou o telefone, Gabriel retomou a conversa com o garoto, interrompida pela ligação do marido: — Vullen, a propósito daquilo que estávamos conversando, os grandes mitos da ficção, os que realmente merecem destaque, não têm medo do inimigo. A grande batalha que travam é com sua própria fração humana. Com aquelas necessidades básicas do homem em sociedade, especialmente quando diz respeito ao amor, como carinho, beijo, sexo — seguiu o pai, externando suas opiniões, após ler diversos apontamentos de histórias escritas pelo filho num caderno preto de capa dura. Aquele 24 de dezembro de 2010 marcou a última ceia com todos os lugares da mesa dos Thompson ocupados. A casa da Tanya Drive estava milimetricamente decorada, a mesa era farta e não faltaram garrafas de Cabernet Sauvignon para brindar à festa. A base da árvore de Natal praticamente desapareceu embaixo de tantos presentes. Mas tudo não passava de um belo Papai Noel disfarçado em veste vermelha e branca e com o saco cheio. Quando o relógio soou meia-noite, Matthew deixou de lado seu deslumbramento pela locomotiva percorrendo a vila em miniatura para os abraços de Feliz Natal e a entrega dos presentes. Ethan pediu a palavra: — Família! — ele pediu a atenção de todos. — Eu e Helen queremos falar uma coisa... Nós sabemos que mamãe e Nicole devem estar furiosas por não termos, aparentemente, nenhum presente a lhes dar. — Ethan foi interrompido pelos protestos de Cathy e Nicky e pela gargalhada dos demais. — Mas... as aparências enganam! — voltou-se para a esposa. — Eu falo ou você fala? — Não sei. Fale você! — respondeu Helen. — Não, querida, é melhor que você fale! — Ethan, eu não sou boa pra essas coisas... — Mas, meu anjo... — Helen está grávida! — bradou Justin, antecipando a notícia. — Me perdoem! Mas não aguentei a tensão. — Oh! Obrigada, Justin! — disse Helen, constrangida. — Obrigado mesmo, Justin... Por estragar a surpresa! Como você ficou sabendo? — Helen me contou hoje cedo — Justin estava duplamente constrangido, mas não conseguia suportar aqueles jogos. — Meu Deus! Isso é maravilhoso! — festejou Edward. A notícia foi um grande presente para a família. Catherine foi pega de surpresa e temia pela nora ainda em tratamento, mas mostrou-se verdadeiramente feliz com a perspectiva de um novo neto. — Vamos ver se essa mocinha vai segurar essa criança desta vez! — cochichou Mildred ao ouvido de John. E foi logo abraçar Helen. — Oh! Querida! Venha cá. Dê-me um abraço! Esse foi o nosso melhor presente de Natal de todos os tempos, não é, John?! Agora vamos ter nosso primeiro sobrinho-neto! — E eu? — questionou Matthew, quanto àquela afirmação. — Ah! Me desculpe. É verdade! Nós já temos um sobrinho-neto. Tão querido! Vamos ter nosso segundo! — Um brinde! — interrompeu Edward, conclamando a família a erguer suas taças. — Um brinde a mais um Thompson que está a caminho! A segunda-feira, dia 27 de dezembro de 2010, começou como um dia comum, seguindo os hábitos saudáveis impostos por Gabriel, o "cuidador dos corações". Mesmo com o inverno rigoroso, os três acordavam cedo e corriam três quilômetros às margens do Pine Hill. Depois chegavam em casa e tomavam juntos um belo café da manhã. Estavam à mesa quando o celular de Justin tocou. Era Ileana Northfleet, advogada da ETS. Pediu licença ao marido e ao filho e quebrou a regra de nunca atender telefonemas durante as refeições. Atendeu-a na varanda, numa conversa que não durou mais que cinco minutos. Voltou à mesa e disse, em tom grave: — Ethan e tio John estão presos. — O quê? — Gabriel levantou-se, incrédulo. — Foram presos nessa madrugada, na sede da ETS — revelou Justin, completamente tenso. — Eu preciso descer imediatamente para Worcester. — Mas o que aconteceu? Foi aquela história que você estava investigando com a Emma? — questionou o médico, com quem Justin não mantinha segredos. — É bem provável... Mas ainda não sei os detalhes... A dra. Ileana só pediu pra que eu vá pra lá. — Justin alcançou o sobretudo no suporte para roupas, vestindo-o sobre o terno escuro, já de saída: — Gabe e Matt, por favor, não falem nada ainda para a família. E se alguém ligar pra cá, encaminhem para a Emma na ETS, o.k.?! — Justin! — interceptou Gabriel, ao lado de Matthew, que estava visivelmente assustado. — Eu vou cancelar meu plantão e nós vamos com você. — De jeito nenhum, meu amor! Vocês ficam aqui... É melhor mesmo que você cancele seu plantão, mas fique aqui em Holden. Tenho certeza de que vou precisar de vocês aqui. — Promete que você vai ter cuidado? — pediu Gabriel. — Eu prometo. Mas agora eu tenho que ir. — Daddy J, não corra! — exigiu Matthew. — Não se preocupe, Vullen. Vai ficar tudo bem. Gabe e Matt ficaram à varanda de entrada da casa do Pine Hill, acompanhando Justin sair em alta velocidade em seu carro, desaparecendo em meio à névoa matinal e aos troncos grossos dos pinheiros que ladeavam o caminho. Quando Justin chegou à sede da ETS, na esquina da Franklin com a Foster Street, em Worcester, deparou-se com dezenas de carros do FBI e um batalhão de jornalistas. Desceu com dificuldade até o estacionamento privativo da diretoria, vendo os agentes carregando computadores, notebooks, arquivos e muitos documentos para os veículos oficiais. Assim que desceu do Hummer, um homem alto, magro e de bigode espesso, trajando um terno caramelo, veio em sua direção. — Sr. Justin Thompson? — Sim, senhor. — Meu nome é Stefano LaBelle — estendeu a mão em cumprimento. — Sou o agente do FBI que está conduzindo essa operação. Temos mandatos de busca e apreensão contra sua empresa. Também estamos cumprindo, simultaneamente, outros dezesseis mandatos de prisão aqui e em outras filiais da ETS em três estados. — Percebendo que Justin estava atento às informações, mas bastante tenso, LaBelle esclareceu: — Seu irmão, Ethan Thompson, e seu tio, John Collins, foram presos, acusados de diversas fraudes comerciais e financeiras, assim como seus cúmplices nas filiais de Connecticut, New Hampshire e do Maine. — Agente LaBelle, eu acredito que... — Justin, assustado, mas já ciente do que se passava, foi interrompido pelo oficial. — Sr. Thompson, como presidente da ETS, você só não está sendo preso porque escutas telefônicas autorizadas pela Justiça de Massachusetts interceptaram diversas conversas entre você e uma assessora... — o agente consultou os papéis em mãos. — O nome dela é Emma Elmhirst. As investigações concluíram que você também estava sendo enganado e já tinha ordenado a criação de armadilhas para pegar os fraudadores. Lamento que eles sejam da sua família. — Eu já desconfiava, Sr. LaBelle — acrescentou Justin, num misto de raiva, constrangimento e humilhação. — Não se preocupe quanto à imprensa. Nós já conversamos com a advogada da empresa e sua assessoria de comunicação. Ainda não foi dada nenhuma declaração aos repórteres. — E como eles ficaram sabendo dessa operação, agente LaBelle? — questionou Justin. — Você sabe como é, né?! — respondeu o oficial, afagando o enorme bigode com os dedos. — Os jornalistas são cobras criadas, sempre descobrem tudo! Catherine estava tirando a neve acumulada em frente à sua casa quando viu o carro de Mildred entrar em alta velocidade pela Tanya Drive, cruzando a rotatória final numa linha reta. A mulher desceu do carro desesperada, aos prantos e gritando: — Cathy! Cathy! Em nome de Deus, por que estão fazendo isso conosco? — O que está acontecendo, Mildred? — Catherine assustou-se. — Me diga o que está havendo. — Eu acabei de ver na TV. Está dando em todos os jornais! — Mildred não conseguia unir os pensamentos. — Eles vão acabar conosco! Vão nos destruir! É o nosso fim! — Ei! O que está acontecendo aqui? — perguntou Nicole, saindo de casa acompanhada por Edward, após ouvir os gritos da tia. — É um ataque terrorista? Uma invasão alienígena? — É muito pior! Muito pior! — a tia não parava de soluçar, em desespero. — Ed, você precisa fazer alguma coisa... Eu não confio no Justin nessas horas! — Pelo amor de Deus, Mildred! Tente se acalmar e nos dizer o que está acontecendo — pediu Edward, logo percebendo que algo muito sério estava em curso, já que os carros de Gabriel e Helen também acabavam de estacionar em frente à sua casa. — Como ficar calma? Oh, meu Deus! Eu preciso de um remédio pra minha pressão — Mildred não conseguia concluir os raciocínios. — Foi o Justin? O que aconteceu com meu filho? — Catherine sentiu uma pontada no coração ao imaginar que algo ruim pudesse ter acontecido ao filho do meio. — Não, Cathy! — interveio Gabriel, chegando às pressas, seguido por Matthew e Helen, que também estava com cara de desespero. — Não foi com o Justin. — Gabe, me diga logo o que está acontecendo, antes que minha cabeça exploda! — implorou Edward. — Tio John e Ethan foram presos — anunciou Gabriel, tratando de antecipar as explicações em meio à chuva de perguntas. — Justin já está na sede da ETS com os advogados. Eles estão sendo acusados por fraudes comerciais e financeiras. — Mas isso não é possível! — bradou Ed. — Isso é um completo absurdo! Não pode ser verdade... — Onde eles estão? Onde eles estão? — Catherine indagava sem cessar, derrubada em prantos. — Agora nós precisamos tentar manter a calma — pediu Gabriel, sentindo a dificuldade de ser atendido. — Vamos entrar e eu explico tudo. Mas nós precisamos manter a calma... Só assim vamos poder ajudá-los. Como numa combinação prévia, todos os telefones da casa e celulares começaram a tocar. Não havia a menor possibilidade de esconder aquela situação. Todos os noticiários da Costa Leste dos Estados Unidos já estavam anunciando a operação do FBI na ETS. Apenas a CNN e a WCVB-TV, afiliada da ABC em Boston, mostravam alguma cautela nas informações. Alguns veículos de comunicação já falavam no caso como o maior escândalo automotivo da história dos Estados Unidos. Os dias seguintes à explosão do caso foram sôfregos. Justin, com a ajuda do pai, montou um gabinete de crise na sede da ETS. Gabriel encafuou o resto da família na casa do Pine Hill, mais isolada e onde o acesso da imprensa e dos curiosos seria infinitamente mais difícil. Ainda assim, um paparazzo, escondido na margem oposta do lago e com lentes potentes, conseguiu tirar várias fotos dos Thompson nos jardins da casa. No dia seguinte, essas fotos estampavam a capa de alguns jornais e revistas. Dentre os tabloides sensacionalistas, o que foi mais comedido dizia: "Escândalo — Obsolescência Planejada: veja o estilo de vida luxuoso dos donos da ETS". Por sorte, se assim é possível expressar, o Caso ETS, como ficou conhecido, estourou à véspera das festividades do Ano-Novo. No final de semana da virada, o assunto ainda ganhava páginas internas, mas não tinha mais apelo de capa, o que ajudava no processo de arrefecer o imbróglio entre a verdade dos fatos e as especulações da mídia. Ainda assim, um notável colunista do The Boston Globe fez uma miscelânea entre o Caso ETS e as tentativas de retomada da economia norte-americana, acusando não apenas a empresa, mas a maioria das montadoras em crise de praticar a Obsolescência Planejada como estratégia criminosa para manter a circulação de capitais no setor. Quando 2011 raiou, duas das principais indústrias fornecedoras que tinham a ETS Como concessionária exclusiva na região da Nova Inglaterra suspenderam os contratos e entraram com processos judiciais exigindo indenizações milionárias da empresa dos Thompson. Os advogados da ETS Só conseguiram a soltura de Ethan e John na terça-feira, dia 11 de janeiro de 2011, após o pagamento de oitocentos mil dólares de fiança. O primeiro ato de liberdade foi uma reunião particular, no escritório da casa de Holden, onde estavam presentes apenas Edward, Justin, os dois acusados, a Dra. Ileana Northfleet e três dos melhores advogados de Massachusetts, contratados a peso de ouro. Lá, Ethan e John viram-se obrigados a confessar, à minúcia, o passo a passo do golpe que vinham aplicando na empresa desde o início de 2008. Primeiro tinham testado o plano em filiais menores no Maine e em New Hampshire. Depois expandiram para cidades em Vermont e Rhode Island. Como não tinham sido notados, inseriram concessionárias de Massachusetts e Connecticut. Foi nesse momento que a assessora de imprensa Emma Elmhirst detectou uma série de reclamações correlatas de clientes e desconfiou, produzindo o primeiro relatório. Sem saber que Ethan e John eram os cabeças do esquema e tendo-os como representantes dos setores Comercial e Financeiro, respectivamente, entregou-lhes sua suspeição. Diante daquele perigo, tio e sobrinho tinham duas opções: ou confessavam a Justin e o convenciam a permitir a Obsolescência Planejada como uma estratégia de mercado; ou deveriam partir de forma agressiva na tentativa de desqualificar o presidente da ETS E conquistar o apoio de Edward. Como tinham a certeza de que Justin jamais aceitaria a prática de fraudes comerciais na empresa, a segunda opção foi levada a cabo, culminando naquele 20 de abril de 2009, quando conseguiram a intervenção de Ed sobre os negócios, alegando os números negativos da empresa e a centralização intransigente de Justin na presidência da ETS. Considerando apenas os relatórios que lhe foram apresentados e sem ter ciência da fraude, o patriarca acabou se tornando cúmplice dos crimes praticados. — Seu imbecil! — Edward acertou um tapa na cara de Ethan, que chorava como nos tempos de criança, quando era repreendido por suas travessuras. — Ed, nós só... — John tentou falar, mas foi interrompido por Edward, que lhe apontou o dedo na cara. — Cale a boca, seu velho desgraçado! — bradou. — Vocês dois me traíram, me enganaram, enganaram o Justin e toda a família. Vocês têm noção do que fizeram? Vocês arruinaram quatro décadas de história! Em dois anos, destruíram quarenta anos de trabalho! Arruinaram o império que eu construí com dedicação e honestidade. — Pai, me perdoe... — aos soluços, Ethan implorava. — Cale sua boca, moleque! — Ed preparava-se para dar outro tapa na cara do filho, quando Justin o segurou. — Pai, se acalme — pediu. — Isso não vai adiantar. Nem vai resolver os problemas. — Como você quer que eu me acalme? — o pai caminhou até o pequeno bar improvisado do escritório e serviu-se de uísque, sem gelo. — Essas duas cobras que eu criei dentro de casa, dentro da minha empresa. Dois bandidos! Vocês mereciam apodrecer na cadeia! — Pai... — Ethan ainda tentava qualquer apelo. — Eu já disse pra calar a boca! — Edward arremessou o copo de vidro contra o filho, que conseguiu desviar por reflexo, deixando-o explodir em cacos, próximo à porta do escritório. — Não quero mais ouvir a sua voz, Ethan... Eu não quero mais ver a cara dos dois. Fora daqui! Fora da minha casa! Fora! Catherine começou a esmurrar a porta, tão logo ouviu os gritos e o copo quebrando. Ficou desesperada ao ver Edward enxotando o filho e o cunhado. Ela tentou conter o marido. — Ed, pelo amor de Deus, não faça isso! — tentou interferir, no que foi arremessada, por sorte, ao sofá. — Não venha com seus perdões românticos, Cathy! — Edward gritava. — Eles arruinaram nossa família! E a culpa é sua! — apontou para Catherine. — A culpa é toda sua! Quando esse safado aprontava, você passava a mão na cabeça, defendia-o, não permitia que eu lhe desse os corretivos! Viu no que deu?! A culpa é toda sua! Seu filho é um criminoso federal! — Pai, por favor... — Justin tentava contê-lo. — Eu quero vocês fora da minha casa! Agora! — estava transtornado e empurrava Ethan e John para a saída. — Fora daqui! Torçam pra que eu nunca mais coloque os olhos em vocês, porque eu não vou responder pelos meus atos! Nicole tirou Helen da sala, temendo pelo bebê que ela carregava na barriga. Gabriel ordenou que Matthew as acompanhasse até a cozinha. Não queria o garoto assistindo àquela crise generalizada. Justin ficou ao lado da mãe, jogada aos prantos no sofá, e os quatro advogados não ousaram dizer qualquer palavra. Mildred tratou de fingir um desmaio, despencando no chão da sala. Gabriel correu para acudi-la. — Gabriel, não coloque suas mãos limpas nessa imundície! — Edward empurrou o genro. Segurou Mildred por baixo das axilas e seguiu arrastando-a até a porta. — Você também vai pra fora da minha casa, sua ingrata! Eu aposto que sabia de tudo! E aposto que está ouvindo tudo que estou dizendo! — John e Gabriel tentaram impedir o patriarca, mas ele estava irascível. Arrastou a irmã até o lado de fora da casa. — Eu sustentei esses vagabundos por décadas! Dei emprego, casa, comida, dinheiro! Judas! Não ousem mais aparecer aqui! E tratem de arrumar bons advogados... Da ETS não sairá um único centavo para defender vocês! Fora daqui! Sumam da frente da minha casa e nunca mais apareçam! Eu não quero passar pela humilhação de os vizinhos verem bandidos na minha casa! Edward bateu a porta atrás de si e despencou de joelhos no chão, chorando compulsivamente. Ao longe, assustado com a confusão, Matthew viu o desespero daquele homem, urrando uma dor que parecia dilacerar sua alma. Sentiu pena de Ed. Mas o recôndito mais cinzento de suas memórias o lembrou de toda a tristeza e dor vividas por sua mãe e do desespero que a levou à morte. Apesar de algum gosto por presenciar o castigo que Edward recebera, predominava em Matthew o sentimento de compaixão. No final daquela manhã de terça-feira, o garoto aprendeu uma das mais duras lições da vida: a punição para os erros humanos sempre vem, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde; mas o pior de todos os castigos é inspirar piedade. Não seria fácil arrumar toda aquela bagunça. "Talvez jamais seja possível", concluiu Nicole, em pensamento, enquanto recolhia os cacos do copo que o pai arremessou contra Ethan no escritório. Os alicerces da família Thompson tinham sido abalados e não havia qualquer vislumbre de reconstrução. Ela caminhou até a grande janela do cômodo. Viu a neve caindo lentamente sobre o jardim. Olhou ao redor de si e era capaz de ouvir os gritos ecoando nas paredes, repetindo a tempestade daquela manhã. Voltou a observar o jardim e a imensidão branca que o cobria. Num ímpeto, abriu a janela. Uma lufada de vento gelado passou por seu rosto e sacudiu seus cabelos. As paredes silenciaram. Fechou os olhos e deixou-se invadir pela quietude do frio. Diante da desordem, o ser humano tende a se trancar do lado de dentro. Ou permite ser trancado. Mas, na maioria das vezes, a bagunça não é externa. A desordem é interna e ficamos presos dentro de cômodos cada vez menores, salpicados de copos quebrados e paredes que não calam. Invariavelmente, tudo que precisamos fazer é abrir a janela e sair. Não por acaso, diante dos piores problemas afigura-se a necessidade de "encontrar uma saída". A quietude externa pode mudar e salvar vidas. Nicole abriu os olhos, alcançou o telefone sobre a mesa do pai e ligou para Christian. Diante de tudo aquilo, tinha chegado o momento de uma conversa definitiva. Justin e Gabriel decidiram passar aquela noite na casa da Tanya Drive. Sequer cogitaram a hipótese de deixar Edward e Catherine sozinhos no olho do furacão. Já passava das dez da noite quando deitaram na cama, com Matthew dormindo entre eles, como que agasalhado, buscando um cantinho de proteção entre seus pais adotivos. O garoto já estava no sono profundo, próprio dos adolescentes. — Como vai ser agora, Justin? — perguntou Gabriel, apreensivo e falando baixo para não acordar o filho. — A situação não é simples... — respondeu Justin, acompanhando o tom do marido. — Eu falei novamente com os advogados, hoje à tarde. — Que a situação não é simples, não precisamos de nenhum advogado pra dizer. Está mais que óbvio! Eu quero saber quais são as possibilidades de solução. — Bom, eu não fui acusado pelas fraudes. Pelo contrário... as investigações provaram que eu estava no caminho de descobri-las. O FBI só foi mais rápido. Isso me dá alguma flexibilidade para tentar sanar essa crise e encontrar alguma forma de reerguer a empresa e sua credibilidade. — Mas, Justin, como vão ficar o Ethan e o tio John? — Não vão ficar, Gabe. O Conselho Administrativo da ETS acatou meu pedido hoje e os dois foram destituídos dos cargos, mas eles continuam acionistas. Papai foi considerado licenciado para todos os fins. Ele não tem condições de participar de quaisquer decisões nesse momento. Nós não vamos poder agir impulsivamente. Tudo terá que ser calculado e em longo prazo. — Meu amor, eu posso pedir um afastamento temporário do UMass para ajudá-lo na ETS... Nancy é a diretora e vai compreender perfeitamente — prontificou-se Gabriel. — Nunca conheci uma pessoa que tivesse um coração maior que o seu, Gabe! — Justin esticou-se por cima da cabeça de Matthew e beijou o marido. — Eu agradeço sua proposta, mas acho melhor você manter seu emprego no UMass, pois não sabemos como tudo isso vai terminar. — Você acha que vão exigir o fechamento da ETS? — Isso não. As autoridades entenderam que a presidência e o conselho administrativo não estavam envolvidos e colaboramos com tudo que nos foi solicitado, ainda que isso possa representar a condenação do Ethan e do tio John. — Justin parecia engolir em seco. — Eu sei que é terrível dizer isso, mas eles não nos deixaram escolha. Agora precisamos salvar a empresa, algo que talvez não seja possível. — Justin, há mais alguma coisa que eu deva saber? — Há, sim, meu amor — assentiu Justin, levando a mão à cabeça de Gabriel para um cafuné. — Mas eu não quero preocupá-lo. Sei que posso contar com você pra qualquer coisa, mas essa parte dos problemas eu tenho que resolver sozinho. — Você não tem que resolver nada sozinho, Justin! — Gabriel sentou na cama. — Me diga agora o que eu não estou sabendo! — Mas... — Diga agora! — O.k. Eu digo. Antes que você acabe acordando Vullen. — Justin também se sentou na cama. — Duas montadoras se sentiram extremamente prejudicadas pela fraude e pelo escândalo. E, para falar a verdade, elas foram. Não há dúvida. — Bom, disso eu sei... Li nos jornais. — Bem... Cada uma delas está pedindo vinte milhões de dólares de indenização pela quebra dos contratos de exclusividade e por danos à imagem das marcas. — Justin olhou profundamente para o marido. — São quarenta milhões só nesses dois processos! — Quarenta milhões? Meu Deus! Mas a empresa não tem todo esse valor... — E isso apenas nos dois processos das montadoras. Não estamos considerando as centenas de ações que serão movidas pelos clientes lesados. Já pedi um levantamento de mercado. É bem provável que tenhamos de vender parte da ETS para pagar as dívidas. O casal ainda passou algum tempo conversando sobre as possíveis soluções para todo o desespero que se agigantava no horizonte. Não existiam muitos espaços de manobra naquele momento. Nenhum deles poderia fugir às decisões que estavam por vir. Quando Christian chegou à Tanya Drive, Nicole já o aguardava, sentada em um dos bancos do jardim frontal da residência dos Thompson, iluminada pela luz amarelada de dois pequenos postes e com o cachecol em lã vermelha envolvendo a cabeça, protegendo-a do frio de cinco graus negativos daquele fim de noite de janeiro. — Nicky, como estão as coisas? — perguntou o professor, tentando sem sucesso dar-lhe um beijo na boca. — Ainda estamos na tempestade — respondeu Nicole, esquivando-se da aproximação do namorado. — Mas esse não é o ponto, Christian. — Não estou gostando do seu tom de voz... — Olha, você sabe que eu sou objetiva, não gosto de fazer rodeios — ela começou. — Fui aceita na Universidade Columbia e vou para Nova York. — Que ótimo, querida! — Christian tentou abraçá-la, mas foi novamente repelido. — Podemos nos mudar para Nova York! — Não, Chris. Não podemos. Eu posso. Você, não! — O que você está tentando dizer? — Não estou "tentando dizer". Estou dizendo! — Nicky, você está terminando comigo? — Estou — taxou Nicole, com alguma dor. — Eu estou terminando com você. A conversa foi muito mais simples do que a garota previa. O professor não retrucou à decisão. Sequer insistiu. No fundo, Christian sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde. Tinha certeza de que aquela antiga conversa com Thomas Marshall provocara os instintos da namorada. E contra os instintos, não há argumentos. Paradoxalmente, foi Nicole quem ponderou. — Você vai aceitar assim, tranquilamente?! — O que você esperava? — Christian sorriu, em sarcasmo. — Que eu me ajoelhasse e implorasse seu amor? A dignidade é a única coisa que carregamos ao longo da vida. — Isso não é apenas uma questão de dignidade. — É, sim, Nicole! — disse ele. — E mesmo que não fosse, essa é a única coisa que faz diferença para mim nesse momento. Não houve um "adeus". Mas também não houve um "até breve". O fim da relação era cristalino. Quando assim o é, qualquer despedida corre o risco de cair nas falácias. Nicole e Christian não precisavam lograr suas próprias consciências. Nicky continuou sentada no jardim da casa, observando o carro do professor desaparecer entre a neve e a névoa que dominavam a Tanya Drive. A quarta-feira, 12 de janeiro, amanheceu cinzenta, pálida como típicas manhãs de inverno na Costa Leste dos Estados Unidos. O sereno da madrugada anterior não tivera tempo de escorrer pelas folhas das árvores e cair ao chão. Foi interrompido no meio do processo pelo frio intenso, formando pequenos cones invertidos a pesar o limbo dos folículos pinulados. O tapete branco cobria o chão por toda parte, onde quer que os olhos avistassem. Ao levantar da cama, Justin teve a real sensação de que era o primeiro a fazê-lo na casa da Tanya Drive. Desceu a escada em meio ao silêncio. Avistou o grande relógio de parede da sala de jantar, que marcava 10h18 da manhã. Foi até a cozinha, vazia como nunca antes. Abriu a porta dos fundos e viu a neve cobrindo todo o jardim e a passarela após a pequena escada. "Se mamãe já tivesse acordado, essa neve não estaria mais no caminho", pensou. Mas, em seguida, conseguiu distinguir delicados passos fazendo uma trilha até a garagem. Seguiu-os, confirmando que o carro de Catherine não estava mais lá. "Onde ela foi tão cedo?", questionou-se com alguma aflição. Voltou ao interior da residência, buscando algum indício que pudesse revelar o destino da mãe. Preso à geladeira com um ímã em forma de couve-flor, um bilhete em papel azulado jazia, dobrado em três partes e quase imperceptível. Justin pôs-se a ler o que sua mãe escrevera: Caro Edward e queridos filhos, Há quase quarenta anos, tomei uma decisão julgando que aquele seria o melhor caminho para minha vida. Talvez tenha sido. Talvez, não. Como afirmar alguma coisa no momento em que todos nós estamos submersos por dúvidas e questionamentos? Tudo que sei é que não posso voltar no tempo e retificar minhas escolhas, e que a vida nos cobra diariamente a ratificação delas. Eu sei que construímos uma família linda, fomos, ao máximo, os pais que podíamos ser e, ainda que estejamos no olho de um furacão, não podemos atribuir alguma culpa específica a fatos isolados. Mas também não podemos mais fingir que nada está acontecendo. Tenho convicção de que sou uma boa mãe, assim como Edward é um excelente pai e vocês são filhos extraordinários, já construindo suas próprias famílias. Não acredito que falhamos como tal. A tempestade atual é apenas o resultado de decisões irrefletidas, tal como a minha há quatro décadas. Se eu não posso voltar no tempo e acertar o caminho, quero aproveitar os dias, os meses e os anos que me restam tentando construir uma nova estrada, como aquela que avistei aos meus vinte anos. Não tenho "ilusões de Dorothy". Apenas deixei-me tomar pelas possibilidades. Não fiquem preocupados comigo. Eu estarei bem, assim como espero que fiquem. Em breve, entrarei em contato para dizer onde estou e o que farei. Mas agora preciso de algum tempo para curar as feridas e pavimentar esse novo caminho. Ele será fundamental para que eu possa estar viva e para que, de alguma forma, eu tenha condições emocionais de ajudar cada um de vocês. Apenas respeitem o tempo. Já sinto saudades de vocês... Mas não sinto saudades de tudo. Com amor, Cathy Justin sentiu-se anestesiado ao terminar a leitura. Jamais imaginou que sua mãe fosse capaz de lhes pedir "um tempo". Sentou em uma das banquetas entre a copa e a cozinha e chorou. Não tinha uma definição para o que sentia: misto de medo, raiva, susto e até algum rancor. Ficou ali, lendo e relendo o bilhete. Depois subiu novamente ao quarto. Precisava aninhar-se ao marido, numa tentativa de sentir alguma proteção. Encontrou Gabriel e Matthew dormindo, abraçados. Deitou na cama e se juntou aos dois. Sentiu quando o filho virou e jogou uma perna sobre cada pai e, ainda em sono profundo, com uma das mãos começou a amarfanhar sua orelha, como fazia todas as vezes que os três dormiam juntos. Edward acordou sentindo que sua cabeça e seu corpo pesavam as toneladas de um elefante. O sedativo que Gabriel lhe dera na noite anterior ainda parecia atuar em seu organismo, deixando seus movimentos reféns da tontura. Foi ao banheiro da suíte, acionou a torneira e mergulhou o rosto em punhados de água fria. Ao olhar no espelho, mal conseguia se reconhecer, quiçá ousar adentrar as memórias do dia anterior. Estacou à porta e ficou tentando calcular a distância que teria de percorrer até a cozinha, sem a certeza de que a conseguiria transpor. Mas precisava de um café forte. Ou uma dose de uísque, cogitou. Arrastava-se vagarosamente pelo corredor quando, em frente à porta do quarto de Justin, conseguiu ouvir alguma conversa, sem distinguir palavras. "Justin, Gabe e Matt dormiram aqui?", questionou-se em meio à confusão. Quanto mais se aproximava da porta de madeira, mais os sons ficavam nítidos: — ... e eu só achei esse bilhete grudado na geladeira. Ela foi embora e só deixou um pedaço de papel! — dizia Justin, com voz visivelmente trêmula. — Justin, ela foi em busca da felicidade. Ela tem esse direito! — argumentou Nicole, que estava no quarto dos rapazes e teve a voz identificada pelo pai. — Você sabia que ela faria isso? — questionou o irmão. — Não exatamente. Mas eu imaginei. — Como assim, Nicky? — intrometeu-se Gabriel. — Diga-nos o que está acontecendo. Estamos aflitos. Cathy saiu sem rumo, sem dizer pra onde iria, deixando só um bilhete... Tudo isso é muito estranho. — Ela não saiu sem rumo! — assegurou a filha. — Ela, com certeza, foi para Vermont. — Vermont? — estranhou Justin. — Por que ela iria para Vermont? — Olha, Justin, vocês não devem se lembrar, mas tinha um homem na festa. Ele usava um terno escuro e passou toda a cerimônia com o chapéu na mão. Ele chegou a cumprimentá-los. Disse que era um antigo amigo da mamãe. — Enquanto Nicole falava, tanto Justin quanto Gabriel assentiram com a cabeça, recordando a pessoa que ela descrevia. Do lado de fora do quarto, Ed também conseguia se lembrar daquele homem na festa. Nicole prosseguiu: — Pois é... Aquele é Jeffrey, o primeiro namorado dela. A história é muito longa, mas só pra resumir, há quase quarenta anos, ela o deixou para se casar com o papai. Ele ainda veio atrás dela, mas já era tarde demais. — E ele mora em Vermont — concluiu Gabriel. — Exatamente — confirmou Nicky. — Mamãe ficou muito mexida desde que se reencontraram na festa de vocês. Mesmo depois de casada com o papai, eles ainda se corresponderam por um tempo. — Como é que é? — Justin parecia ainda mais assustado. — Então a mamãe traiu o papai? — Pelo amor de Deus, Justin! — esbravejou Nicole. — Não se pode chamar de traição uma simples troca de correspondências! — Discordo, Nicky! — falou Gabriel, no que foi corroborado por Justin. — Me desculpe, mas isso é bastante complicado. — Seja como for, Gabe. A questão é que agora, diante de todas as coisas que aconteceram, ela acabou explodindo. E, certamente, foi encontrá-lo. — Nicky pegou o bilhete. Edward ouvia tudo atentamente. — Ela diz aqui que precisa de um tempo e garante que vai entrar em contato. Eu acho que devemos respeitá-la. — Como você sabe de tudo isso, Nicky? — perguntou Justin, intrigado. — Vocês conversaram sobre isso? — Não, Justin! Claro que não! Você conhece a mamãe... Ela jamais conversaria sobre isso com um de nós. Antes do casamento, quando começamos a arrumar Pine Hill para a festa e a mudança de vocês, eu acabei encontrando as cartas do Jeffrey escondidas no sótão. Não deixei mamãe perceber que eu as tinha achado e as trouxe pra cá. Estão no criado-mudo do meu quarto... São relatos apaixonados... — Ed não terminou de ouvir o que Nicole tinha a dizer sobre as tais cartas. Ele mesmo poderia lê-las. Partiu em direção ao quarto da filha. Por sorte, também não escutou quando Gabriel concluiu: — Você leu as cartas e decidiu convidá-lo para o casamento? Foi isso? — Exatamente — respondeu Nicky. Pela fresta da porta do banheiro, ao final do corredor do segundo pavimento, Matthew acompanhava os movimentos de Edward. Tinha ido escovar os dentes e, quando estava para sair, viu quando ele parou em frente ao quarto dos pais, ouvindo a conversa. Viu também quando ele entrou trôpego no quarto de Nicole e saiu de lá escondendo na parte de trás da calça um chumaço com vários envelopes velhos. Só quando Ed voltou para seu quarto e trancou a porta, o garoto saiu do banheiro. Matthew nunca contou a ninguém ter visto aquela cena. Passava das duas da tarde quando Edward encontrou os demais almoçando na mesa da copa. Estava bem-vestido, barbeado e com os cabelos penteados. Ainda assim, tinha a tristeza estampada no rosto, como era de esperar. — Papai, boa tarde! Você está melhor? — saudou-o Justin, recebendo um visível sorriso forçado como resposta. — Gabe buscou comida no Val's Restaurant. Sente-se aqui... Almoce conosco. — Onde está sua mãe? — questionou Edward, em desfaçatez. — Mamãe deu uma saída, mas já deve estar voltando — antecipou-se Nicole, entreolhando o irmão e o cunhando. — Ótimo! Ela deve estar bastante brava comigo! — seguiu o engodo. — Me perdoem a descortesia, mas eu não vou almoçar com vocês. Eu vou sair. — Aonde você vai? — interrogou Justin, levantando-se da banqueta. — Vou a Paxton — respondeu Ed, com segurança. — Não se preocupe, eu estou bem! Eu marquei um encontro com Quoyle, um amigo das antigas. — Quoyle? Quem é Quoyle? — Justin estava achando aquilo estranho. Nunca tinha ouvido o pai falar sobre esse homem. — Como eu disse, um amigo das antigas! — repetiu Edward, sem dar muitas explicações e seguindo em direção à porta. Antes de sair, ressaltou seu recado. — Quando sua mãe voltar, digam a ela que eu a amo e que também a perdoo. — O que ele quis dizer com isso? — tentava entender Nicole. — Eu não sei, mas isso está tão esquisito. — Justin foi até a porta da cozinha e ficou olhando o pai sair em alta velocidade em seu sedan escuro. Percebeu que algo estava errado naquela história. Voltou-se para os demais na copa e questionou. — Vocês já ouviram o papai falar sobre esse tal Quoyle? — Não. Nunca — respondeu Nicole. — Mas ele disse que é um amigo antigo. E deve ser isso mesmo. Ele deve estar precisando conversar. Desabafar com alguém. O clima nessa casa está péssimo! — Pior será quando ele voltar e descobrir que a mamãe foi embora — previu Justin, voltando à pequena mesa da copa, onde o que havia sobrado da família almoçava. Edward pegou a Graystone Drive até a Reservoir Street. Estava em alta velocidade. No trajeto, abriu o porta-luvas do veículo e pegou a garrafa de uísque que costumeiramente mantinha ali. Abriu-a com a boca e deu uma golada. Quase bateu no carro de uma senhora que deixava sua residência. Passou direto pelo cruzamento, tomando a rodovia estadual 31 Sul, em direção a Paxton. Corria tanto que não viu Gordon cumprimentá-lo enquanto tirava a neve da entrada de seu terreno. A cada lance que lhe passava pela memória, dava um gole na garrafa de uísque. Palavra por palavra, estava absorvido pelas juras de amor eterno reveladas nas antigas cartas de Jeffrey para Catherine. Sadicamente, imaginou-os felizes, com toda cor e movimento, festejando almoços em família, brindando taças de vinho, saboreando o cordeiro assado de Cathy. Ouvia o som das risadas, sentia os abraços apertados. Imaginou a mulher fazendo amor com o rancheiro, agarrados em aloíte passional sobre o feno de algum estábulo de Vermont. "Vagabunda!", gritou dentro do carro, sem deixar de dar goles na bebida. Ouvia os gemidos de prazer de Catherine. Acelerava mais, cada vez que ouvia seus orgasmos com outro homem. A neve cobria toda a vegetação à margem da 31 Sul e a rodovia, mesmo nas retas, não permitia uma boa estabilidade do carro. Mas Edward só sentiu a velocidade em que trafegava quando entrou na curva em formato de S que antecede a ponte sobre o reservatório Kendall. Teve dificuldade para manter o carro na pista, mas não tirou o pé do acelerador. Quando entrou na ponte, o velocímetro de seu sedan estava cravado em cento e quarenta quilômetros por hora. Ouviu novamente Catherine gemendo de prazer. Na margem sul do reservatório Kendall, a jovem Petal tinha acabado de trair o marido com um pescador imundo, que fedia a lixo velho de cozinha. Tinham feito sexo ali mesmo, na beira d'água, e ela limpava a areia das pernas enquanto vestia a calcinha grená. De repente, ouviu um ruído fino ecoar, como fazem as unhas arranhadas na lousa de uma sala de aula. Em seguida um estrondo forte nas águas, como se uma rocha grande tivesse sido jogada dentro do lago. Apertou os olhos para tentar ver de onde vinha aquilo, mas desistiu com o silêncio posterior. Arrumou a alça do sutiã e foi até uma árvore velha, caída às margens do Kendall, onde pendurara suas vestimentas. O pescador imundo também estava sentado em seu tronco, calçando as botas. Olhou para a moça e sorriu. Só então Petal percebeu que o homem não tinha os dentes frontais. Cuspiu no chão e começou a vestir as roupas. Queria sair logo dali. Fosse um dia normal, Catherine poderia gastar cerca de três horas para percorrer os pouco mais de duzentos quilômetros que separam Holden de Middletown Springs, uma pequena cidade de setecentos e quarenta e cinco habitantes no sudoeste de Vermont, quase na divisa com o estado de Nova York. Mas o trajeto consumiu quase dez horas. Por longos trechos, não podia ultrapassar os quarenta quilômetros por hora e foi obrigada a parar duas vezes por conta das interdições nas estradas. Também parou deliberadamente na rodovia 12, exatamente na fronteira entre os estados de Massachusetts e New Hampshire, pouco depois de passar por Winchendon. Ficou olhando o tapete branco entre os pinheiros verdes e o movimento constante do limpador de para-brisas afastando os flocos de neve que ainda caíam naquela região. Sabia que, quando ultrapassasse aquela fronteira, estaria sacramentando a decisão tomada na noite anterior. Alguns poderiam chamar aquilo de covardia. Outros de fuga. Mas só estava tentando seguir as ordens do seu coração, sem qualquer consulta racional. Não fazia isso havia quarenta anos e estava arrependida. Seguindo em frente, foi tomada por compunção assim que parou para abastecer o carro num posto Citgo, logo após cruzar a Ponte Arch, sobre o rio Connecticut, que separa North Walpole, em New Hampshire, e Bellows Falls, já no estado de Vermont. Desceu do veículo e foi tomar um Hot Coffee do Dunkin' Donuts. Estava exausta da noite anterior e sua cabeça não parava de girar. Sentada ali, pela primeira vez foi acometida pelo medo do que seus filhos iriam pensar dela, partindo em disparada em busca de um passado mal resolvido, deixando apenas um bilhete como testemunho. Seguiu em frente. Não havia mais volta. Passava das cinco da tarde quando começou a subir a Dudley Road, em Middletown Springs. Entrou devagar no Rancho Crossing Dreams, que em quase nada fazia lembrar o lugar onde vivera sua primeira noite de amor, quatro décadas antes. A velha casa de madeira deu lugar a um belo chalé em pedras claras e telhado avermelhado, saltando à vista sobre o gelo branco dos campos. Olhou o sopé das colinas onde ficava o antigo armazém e o estábulo, e que agora era ocupado por algo semelhante a uma estufa gigante. Ao parar em frente a casa, avistou Jeffrey, sentando à escada de acesso, fumando um cigarro e esperando-a chegar. Desceu do veículo e foi correndo ao seu encontro. As lágrimas jorraram sem controle e suas pernas pareciam fracas demais. Jogou-se extenuada nos braços daquele homem. Ao sentir as mãos dele percorrendo suas costas, percebeu os arrepios que elas provocavam ao longo da trajetória. Mirou seus olhos, ainda que tivesse a visão ofuscada pelas lágrimas. Ele tinha o olhar tenso. — Jeff, me perdoe — foram as primeiras palavras de Catherine. — Me perdoe por todos esses anos. Me perdoe por não ter vindo com você antes. — Cat, você está bem? — perguntou Jeffrey, em preâmbulo. — Agora eu estou bem! — Eu já estava ficando preocupado. — Não vou mais deixá-lo, Jeff! — Achei que você tinha se perdido pela estrada. Estava prestes a comunicar à polícia. — O quê? — Catherine saltou. — Como você sabia que eu estava vindo pra cá? — Cat, eu preciso que, em primeiro lugar, você fique calma — pediu Jeffrey, começando a conduzi-la à subida da escada de entrada de sua casa. — Como você ficou sabendo? — ela insistia. — Seu filho Justin. Ele ligou pra cá. — Justin? — assustou-se Cathy, novamente. — Mas eu não disse ao Justin que estava vindo pra cá. Aliás, eu não disse pra ninguém. — Isso é o que menos importa agora — conduziu-a para dentro. — Com uma pesquisa rápida na lista telefônica ou na internet é fácil me localizar ou o rancho Crossing Dreams. — Mas, Jeff... Ele não sabe da sua existência! — Catherine não conseguia mais organizar os pensamentos. — Como isso é possível? — Você tem que voltar para Holden imediatamente — anunciou Jeffrey. — Mas não se preocupe. Eu vou com você. — Eu não vou voltar para Holden! — ela mostrava-se definitiva em sua decisão. — Não volto para Holden de jeito nenhum! Eu vim pra ficar com você. Pra fazer aquilo que eu deveria ter feito quarenta anos atrás. — Cat, nós vamos ter todo o caminho de volta para conversar sobre isso. — Você não me quer aqui? É isso? Você tem outra mulher? — ela disparou a falar. — Por que, então, você foi ao casamento do meu filho? — Não fale assim — Jeff abraçou-a. — Eu te quero mais que tudo no mundo. Sempre quis... Sempre sonhei com o dia que você viesse ao meu encontro. — Então por que quer que eu volte para Holden? — Cat, me ouça! — ele a segurou pelos ombros. — Aconteceu uma tragédia.