Capítulo 98

515 63 12
                                    

Pai, eu não acho que vou saber tocar - eu digo, afastando as mãos das teclas do piano. 

  Ele ri, os cabelos com fios grisalhos balançando com a brisa que entra pelas portas abertas. 

Meu amor, você precisa tentar antes que falar que não sabe. 

Tenho uma intuição boa - reclamo, tentando levantar do banquinho de madeira gasto pelo tempo que meu pai fica ali noites a fio. 

  Seus olhos castanhos lotados de pintinhas amarelas miram os meus e ele suspira, se sentando ao meu lado, as mãos caindo nas teclas e então... pura música enche meus ouvidos. Eu sorrio, me aconchegando ao seu lado. 

 Sempre gostei de ouví-lo tocar. Maia também gostava de ouví-lo, mas foi antes dela começar a sair com amigas da nova escola e viver em lanchonetes com as garotas. Andrei sempre achou bobagem a coisa da música. 

  O único que sempre me acompanhou até a sala de música do papai e está sentado no chão agora é Lucian, sorrindo de lado pra mim. 

 Eu sorrio de volta pra ele, mostrando a língua. Ele sempre foi bom com instrumentos. Aos 14 anos já tem três troféus de apresentações na escola. Ele gosta de violino. 

Tente essas notas - meu pai pede e eu volto a atenção para suas mãos. Grossas, mas macias, cheias de calos, mas inteiras. Gosto das suas mãos. Parecem carregar todas as notas musicais nas pontas dos dedos. Todas as músicas nas palmas. Todas as canções nas digitais. 

  Tento as notas e me arrependo no mesmo instante. Erro o dó, apertando o si, que é mega próximo. 

Desculpe - eu peço. 

Não precisa se desculpar, filha - meu pai beija minha testa, levantando. Aprender é isso. Errar  até que você entenda onde está o erro e o conserte. 

  Testo as teclas de novo e repito a nota que ele criou, acertando dessa vez. Eu sorrio. Ele sorri, bagunçando meu cabelo. Gosto quando faz isso, porque minha mãe sempre fala para manter os cabelos penteados. Mas detesto isso. 

Promete que me ajuda a criar mais notas? - eu peço, saindo do banquinho.

  Meu pai bate um dedo no queixo fingindo pensar, então sorri e diz que sim. 

Mas quero que me faça uma promessa - ele se agacha até ficar cara a cara comigo. Eu assinto, ansiosa pela promessa que precisarei fazer. 

Quando você for uma pianista famosa, não esqueça que fui eu quem lhe ensinei. Promete?

  Rio, assentindo. Ele me dá o mindinho e o cruzo com o meu. Dá um beijo em nossos dedos e sorri. 

Promessas são dívidas, minhas pequena. 

  Ele sai da sala, passando pela cortina de CDs fazendo barulho, e logo somos apenas Lucian, eu e o piano. 

 Lucian ri. 

O papai vai te cobrar os treinos de piano, boba - ele mesmo se senta na frente do piano. Para um garoto de 16 anos, ele consegue ser bem infantil. Não sei como deveria ser. 

  Dou um peteleco em seu nariz, o empurrando do banco. 

Não ouviu o pai? - pergunto, me sentando e alongando as mãos. Preciso me tornar uma pianista fantástica. Tenho uma dívida com ele. 

  Lucian ri, saindo da sala, me deixando sozinha. 

  E então eu começo a errar e errar. Até descobrir onde está todos esses erros e consertá-los.

Corte de Sombras e MundosOnde histórias criam vida. Descubra agora