O Último dia de Infância

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          Somente os abençoados com a dádiva de viver o bastante passam por essa etapa da vida: A infância.

          É difícil dizer quando ela termina, pois cada pessoa tem o seu próprio momento daquilo que chamamos "perda da inocência". Estefani, entretanto, sabe exatamente a data em que deixou de ser uma criança. Foi um dia inesquecível, da qual daria tudo para esquecer.

          Naquele dia, outra vez sua mãe chegara em casa, acompanhada de seu mais recente padrasto: Marcos. Ele era atencioso, e procurava ser gentil na maior parte do tempo. A garota, ainda com sete anos, não gostava dele por ter ciúmes da mãe. Marcos, porém, esforçava-se para agradar de toda forma. Perdeu a conta de quantos presentes havia dado a ela durante os três meses de namoro com sua mãe. Apenas três meses de namoro, foi o bastante para que ela o levasse para morar junto. E este fatídico dia era o terceiro desde que se mudou.

          — Por que você não gosta de mim? — perguntou Marcos, se abaixando, e falando com a menina mantendo o contato visual.

          — Você quer tomar minha mãe de mim!

          — Você pode ser minha princesinha também. Não é preciso ter ciúmes — disse ele. Suas palavras eram doces, mas o homem sempre se mantinha distante, evitando tocar na menina. No máximo, bagunçava-lhe os cabelos com a mão. — Eu posso amar as duas, e você pode me ajudar a dar todo o amor que a mamãe merece. O que acha?

           — Não gosto de você! — disse a menina. — Quero que vá embora daqui e nunca mais volte! — E correu para o quarto, batendo a porta com força.

          — O que aconteceu? — disse a mãe preocupada, vindo de outro cômodo.

          — Ela é difícil de lidar — disse Marcos.

          — Dê tempo ao tempo. Ela só tem sete anos.

          — Talvez ela pense que eu vou ser passageiro, como os outros padrastos que ela teve — disse ele.

          — Se depender de mim, isso jamais vai acontecer — disse ela. Marcos era maravilhoso para Ester. Era um sujeito retraído, que não tinha muitos amigos, e por isso tinha tempo de sobra para ser atencioso. Ponderado, e humilde, dando razão a Ester em momentos de conflito, mas colocando a opinião própria, de forma respeitosa, sempre que achava necessário. Muito diferente dos relacionamentos anteriores, onde havia brigas e gritarias. Ofensas. E problemas pequenos, que se tornavam grandes. Quando uma única discussão, por mais boba que fosse, tornava-se em uma extenuante guerra que durava dias. Com Marcos, isso nunca aconteceu. Era como estar no relacionamento dos sonhos. Até aquele dia.

          — Acha que devo falar com ela? — perguntou ele.

          — Não sei se insistir é uma boa ideia. Tentamos de tudo! Até seus presentes ela rejeitou. E ela adorava aquela linha de brinquedos. Talvez, só dar espaço e esperar seja a melhor coisa a se fazer.

          — Eu gostaria de tentar. Se eu notar que não deu certo, eu paro, e dou o espaço pelo tempo que ela quiser. Não pretendo substituir o pai dela.

          — Ninguém poderia. Mas a verdade, é que não ter um pai faz falta a ela.

          — Se ao menos ele tivesse sido homem o bastante para assumi-la. — disse ele.

          — Não gosto quando fala dele — disse ela. — Sabe disso.

          — É que não me conformo.

          — Você é o primeiro que sinto realmente se conectar comigo depois dele. Não gosto de comparar, mas a verdade é que, sempre tive medo. Ainda tenho. Às vezes penso que você pode partir a qualquer momento, como ele fez.

          — Eu vim pra ficar — disse Marcos, acariciando-lhe o rosto.

          — Não teria aceitado morar com você, se não estivesse disposto a assumir essa família como minha. Pro que der e vier.

          — Você é tão bom pra mim, que eu realmente tenho medo de ser um sonho, e ter de acordar.

          Ele a beija e diz:

          — Não é um sonho — Ele olha para o quarto de Estefani. — Vou tentar falar com ela.

          — Boa sorte, amor.

          Marcos se aproxima da porta da menina, e bate de forma sutil.

          — Vai embora! — disse a menina.

          — Só quero conversar

          — Eu não quero conversar com você!

          Ele entra no quarto da garota, e fecha a porta. A menina estava deitada sobre a cama, abraçando um leão de pelúcia que sua mãe havia lhe dado. Estava emburrada, ouvindo algo em seus fones de ouvido. Marcos se aproxima e senta ao lado da cama. Coloca as mãos sobre o braço dela. Ela percebeu que ele queria a sua atenção, pois não costumava tocá-la. Ela se virou para ele, com as sobrancelhas franzidas.

          — Eu nunca vou tirar sua mãe de você — disse ele, olhando nos olhos da menina. — E tudo bem se não gostar de mim. Mas quero que saiba que eu quero muito poder ser seu amigo.

          Ela ficou em silêncio. Ainda com raiva por ele estar morando em sua casa. Marcos pegou o celular, e começou a mexer.

          — Que tal se sairmos juntos hoje? — disse ele, mas a menina nada falava. Ele mostrou o celular e ela viu o cartaz de um filme que queria muito ver. — Posso levar você pra assistir. O que acha? Comemos pizza depois.

          A menina estava relutante, mas os olhos de Marcos pareciam sinceros. Ela aceitou um convite dele pela primeira vez. Mal sabia que isso mudaria sua vida por completo. Se pudesse voltar no tempo, Estefani escolheria dizer para si mesma neste dia: Não aceite!

          — Eu vou! Mas quero levar o Simba! — Era como ela chamava seu leão de pelúcia.

          Marcos concordou. Deu-lhe um sorriso, e bagunçou seus cabelos ao se levantar. Saiu do quarto.

          A menina se sentia bem. Aceitar não havia sido tão ruim quanto imaginou que seria. Podia ser legal assistir o filme e lanchar depois.

          Ela se apressa para tomar banho, porque em duas horas deviam sair.

          Quando deu o horário, Marcos a esperava no carro. Estefani veio correndo e entrou pela porta de trás. Ester sentou-se ao lado do namorado, e o beijou. A menina sentiu nojo, como sempre, mas dessa vez não tentou separá-los como sempre fazia. Limitou-se a fazer careta.

          Marcos dá a partida, e durante o percurso conversava com Ester a respeito de planos para o futuro. Pretensões de trabalhar em casa. Comprar uma casa maior, mais afastada do centro, com um terreno grande. Ter um cachorro. Ester achava tudo maravilhoso, e a menina adorou a ideia de ter um bichinho de estimação. Marcos olha pelo retrovisor a menina sorrir pela primeira vez para algo que ele dissera. Ele olhou para trás para ver o lindo sorriso da menina, e nesse mesmo instante um caminhão, tentando fazer a ultrapassagem, veio na contra-mão dando de encontro com o carro da família.

          O carro ficou irreconhecível. O sangue de Marcos e de Ester coloriam os vidros do carro de vermelho. A menina, salva pelo cinto de segurança, teve apenas algumas escoriações na testa e nas pernas.

          Em muito tempo, a menina jamais voltaria a sorrir daquela forma. A partir desse dia, tudo mudou. 

Nota 

"Esse conto de fato não possui nenhuma cena explícita envolvendo abusos de nenhum tipo, entretanto, a subjetividade é suficiente para causar desconforto em alguns leitores. O escrevi na intenção de mostrar o quão perturbadoramente assustador pode ser a simples insinuação - ou quase insinuação - de um abuso sexual, e como, em hipótese alguma, deve ser glamourizado"

O Último dia de InfânciaOnde histórias criam vida. Descubra agora