Capítulo 27 - Parte Dois

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— Elas estão ali. — Chia aponta, puxando meu braço para a fila em frente às panelas.

Nosso lugar está reservado em frente a Penny e Frida, quando voltamos para este lado com bandejas ocupadas por pratos cheios de comida.

— Demoraram — reclama Penny, de boca cheia. — Já estamos acabando.

— Não demoramos, não — retruco, lançando um sorriso ao final da frase para não parecer grosseira com a menina. — Se comer mais devagar, não acabará tão rápido.

Ela me dá a língua, tornando impossível não abrir um novo sorriso.

Perdi a fome, depois das conversas que tive no dia. Mesmo assim, meu corpo continua sentindo as mudanças em cada área. Sinto falta dos exercícios intensos, de me movimentar, de correr, de ser útil para coisas importantes de verdade. Não me acostumei ao clima, ao horário — que sequer tento entender — ao lugar, nem à comida. Por isso eu tive que me forçar a colocá-la em uma quantidade razoável em meu prato, sem olhar o que estava pegando, e, agora, encher meu garfo com isso.

Sem levar esta perda de apetite em conta, eu acerto uma garfada cheia na boca, sentindo arder em minha boca o gosto agridoce e levemente apimentado do tempero típico de Aliança. Arregalo os olhos, mirando com espanto o purê de mandioca-verde, do tipo que só dá nas encostas marítimas, O único que posso dizer deste sabor é que tem gosto de casa. Parece que meu corpo percebe que o alimento de hoje é como o que sempre tive, pois escuto um roncar animado que me deixa saber que estou mesmo precisando comer.

Engulo e lanço outra porção na boca, engulo e coloco outra na língua, coçando o nariz para o fiozinho de meu cabelo que cai na ponta do mesmo.

— É mandioca-verde? — Indaga Chia, remexendo na bolota esverdeada.

Assinto, sem esvaziar a boca.

— O que é isso? — Retruca Frida, que continua comendo, meio desconfiada.

— Não tinha em sua cidade? — Questiono, vendo-a negar. — Às vezes nós conseguíamos colher um pouco dessas raízes perto da praia e vendíamos uma parte.

— Elas nascem embaixo da água ou na areia úmida. É uma espécie especial achada em poucos lugares, que se tornou bem popular desde sua descoberta, alguns anos atrás, por serem saborosas e maiores que outras raízes — contribui Chia, com a boca cheia.

— Ganhou esse nome por causa da água verde que tem nos arredores das cidades litorais em que são formadas — completo passando a unha nas pálpebras e parte de cima do lábio, com uma careta para minha amiga. — Aparecem quando a maré está baixa e é um prato típico, mesmo que caro, na Sétima Cidade.

— Parece pouco higiênico — é a réplica de Frida. — Prefiro ficar no bom e seguro enroladinho de presunto com carne de cordeiro, que sei do que é feito.

É minha vez de dar de ombros, jogando um pedaço de cordeiro para o prato repleto com verduras de Penny, a qual fitava o meu com a boca meio salivando. Ela sopra um agradecimento e volta a comer.

— Eles colocaram o picadinho de salmão no meio — exclama Chia, no meio de um gemido de degustação. — E tem a pimenta-rosa da Oitava.

Kash ri, inclinando-se de seu lugar ao lado da garota para poder olhá-la.

— Acho que decidiram agradar aqueles que vieram dos litorais de Aliança. No molho tem até a alga-de-colosso que colhemos durante o outono no Sul e Leste da Sexta.

Eu engasgo com sua fala, cuspindo a comida que já havia mastigado no prato e parando de cutucar meus olhos lacrimejantes e meu nariz irritado.

— O quê...?!

Sequer viro-me para as exclamações dos outros, ou para ter consciência da atenção que estou recebendo dos que notam meu desespero em sair do lugar. Estou correndo às cegas, com Chia seguindo-me sem parar de gritar meu nome, em direção ao bebedouro.

Minhas mãos trêmulas agarram a pequena manivela de ferro, meu corpo dobrado sobre si mesmo, enquanto eu me apresso em tentar bombear rios inteiros para meu interior, em meio a uma sequência de dolorosas tossidas que fazem com que minha garganta chegue a um estado de dormência. Estou alheia aos ininterruptos berros de Chia pedindo ajuda, e aos sons de correria que se aproximam de onde estou; mergulhei de cabeça na tarefa de afogar a mim mesma na água do pequeno bocal como um pedido aflito de que o líquido, mais doce do que recomendável, tire o efeito devastador que a alga rara tem sobre o meu estômago, que está dando sinais de que vai liberar em pouco tudo o que comi.

Se vomitar funcionasse, acho que estaria melhor do que estou, quando me vejo expelindo o jantar junto com a água recém-bebida na pia abaixo de mim. Enfio o rosto embaixo da torneira uma vez mais.

Sou puxada de minha posição, caindo no chão como uma boneca de pano, um brinquedo sem articulações. Minha respiração acelerada em um frenesi inevitável, não é de nenhuma ajuda para o trabalho de meus pulmões. A luz que colocam em meu rosto, as mãos que pressionam minha pele e os dedos que tentam abrir meus olhos servem apenas para me deixar mais estressada.

— S-sai— mando, em um fio de voz.

— O que está acontecendo? — Rosna em um timbre abafado. Não consigo enxergar bem o suficiente para identificar aquele que se pronunciou.

— Eu não sei — devolve Chia, com angústia — só o que posso dizer é que ela não pode comer da alga. Não sabíamos que tinha esse tipo de ingrediente no tempero da comida.

— Saiam todos!

A ordem cala a cada ser na sala, exceto o mais importunador.

— O que está acontecendo com ela?

Quero levantar e zombar de Daniel, provocá-lo perguntando se está com medo de perder sua atual única fonte de informações, porque isso significaria que estou bem, que não estou vulnerável, mas a realidade é que estou mole demais para pronunciar sentenças maiores que um resmungado "hm".

— Uma alergia, é provável.

— Levem-na para a enfermaria — a ordem provém de um timbre masculino conhecido e detestável.

— Ela precisa de água! — Quero agradecer minha amiga por se lembrar. E por contrapor-se à sugestão de Samuel. — Água com sal faz passar.

— Que loucura é essa? — Esbraveja Samuel, irritado por ter a decisão questionada. — Nenhuma alergia é tratada com água e sal. Isso não existe.

É impressão minha ou uma minhoca está devorando um peixinho, na parede atrás de Chia? E que bolhas são essas explodindo nas bochechas de Sam?

— Acredite em mim, Sam, já passamos por isso com ela.

Bloqueiam minha visão das bolinhas, puxando meu rosto com dedos frios. A luz me incomoda, e eu puxo o rosto com brusquidão, com a força de um filhote de passarinho.

Estou perdendo os sentidos, aos poucos, quando escuto Kash se pronunciar sua frase:

— Acho que ela vai de...


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