Capítulo 29 - Parte Um

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Em minha cidade-provincial, Mônaco, eu tinha fama de briguenta, entre os adolescentes e jovens que não tinham casa ou família, como eu. Ser considerada uma mentirosa antipática e nada sociável não contribuiu muito com minha reputação. Era um repelente humano, de acordo com eles. E assim foi, por um longo, longo período — estar sozinha não significa ser solitária, e eu já não me incomodava em estar sem ninguém, em afastar a tapas e socos todos que tentavam se aproximar mais que os vários quilômetros impostos por mim e minha impenetrável redoma imaginária de desconfiança e autoproteção.

Essa era eu. Boa em não fazer amigos, ótima em fazer inimigos.

Quando descobri meu talento para aprendizado, comecei a melhorar. Era mais fácil ficar em meu canto, não me sentir provocada por qualquer idiota que se colocasse em meu caminho para me prejudicar por meus "instintos agressivos", mais conhecidos que o recomendado. Deixei de ser novidade com o tempo, parei de me meter em confusão e, com isso, parei de ser tratada como violenta — ninguém falava comigo, eu retribuía o favor.

Com onze anos, passei a me dedicar com afinco ao estudo pobre recebido no Colégio, para não esquecer o que havia aprendido. Pegar emprestado, em segredo, os livros que podia na biblioteca de lá ajudava a incitar minha capacidade e manter-me ocupada. Cada nova lição, cada novo conhecimento e cada nova experiência que vivia me motivavam a aprender a fazer coisas manuais e físicas como luta corpo a corpo e corrida, estimulantes para minha recém-descoberta fome por adrenalina. Afundar no abraço envolvente dela era o que eu fazia de melhor — esquecer o mundo era muito mais fácil quando eu me sentia viva.

O estranho é que, por algum motivo, toda vez que alimentava meu cérebro, sentia minha pele necessitada por um cuidado igual. Foi assim que me tornei a mais veloz corredora dentre os jovens rebeldes de Mônaco, as poucas pessoas com quem eu me permitia ter um mínimo de contato real. E foi graças a esta minha peculiar prática de dedicação à mente — seguida pelo corpo — que, naquela manhã de Segunda, após horas e horas em um forçado repouso em meu quarto lendo um livro curioso de botânica, ouvi a proposta de Sam com um impulso ligeiro de aceitá-la.

Não que eu fosse admitir isso.

— Quer dizer que, se eu concordar em participar por uns dias do treinamento leve com os outros novatos — repito o que acabei de escutar — você me aceita como aprendiz durante todos os dias da semana, sem exigências de continuar com eles?

— Os primeiros dias passaram-se, é tempo o suficiente para todos se acostumarem à rotina da Reserva — diz Sam. — A maioria dos jovens que vieram de Aliança concordou em fazer as atividades de teste, fora as pouquíssimas aulas internas que estão tendo e os trabalhos comunitários que todos fazem. Para eles bastam os ensinamentos de respiração e tentativas de encontrar vozes que ninguém acredita ter, não acha?

Entrecerro os olhos.

— É de propósito! — Acuso, demonstrando não estar realmente ofendida. — Srta. Olívia nos dá aquelas lições para termos vontade de fazer qualquer coisa que não seja aquilo, não é?

Ela nem tenta esconder o sorriso.

— Precisamos incentivá-los — contesta. — Senão, nunca iriam treinar com os outros.

— Nunca esperei uma tática baixa assim de você, Sam — asseguro, com um sorrisinho de canto para mostrar que estou brincando. — Acho que nem daqueles seres horrorosos que são Astrid, Caleb e seu irmão.

Ela revira os olhos, levantando da cama de Chia para sentar-se ao meu lado.

— Penny encontrou um lugar que gosta, e é seguro e vigiado, na cozinha, com Dulce — começa, segurando minhas mãos. No começo, me sinto incomodada, mas logo volto ao conforto. — Sendo assim, não precisa se preocupar tanto com ela.

— Sempre vou me preocupar com Penny — contraponho, deixando-a prosseguir.

— Frida gosta de treinar, o que acredito ser um incentivo, considerando o quanto vocês quatro parecem próximas umas das outras. Chiara também demonstrou interesse em fazer parte do grupo de iniciantes — segue, apontando os detalhes que vê que me desconfortam. — Disse que se sente parada aqui, com o tempo sendo investido nos trabalhos comunitários e em uma porção mínima de aulas chatas — sorrimos — pela manhã e início da tarde.

— Não me importo em ter tempo livre — comento, sem olhá-la.

— O que te impede de treinar, Nori? Não estamos pedindo que faça mais do que é capaz, ou que lute, nem que seja um soldado...

Impeço seus dedos de continuarem a tarefa de acarinhar os meus, erguendo-me para ir até a janela.

— Não gosto de treinos, ou regras, ou pessoas ditando o que devo fazer. Já lido com isso na cozinha.

— Mas gosta de correr e estar ao ar livre, não é? — Faço uma careta, soprando um fio de cabelo que insiste ficar sobre minha boca. — Sua amiga me contou que é rápida. Com o seu tamanho, imagino que possa ser muito ágil, com a orientação correta. Não precisa ser confinada ao seu trabalho na cozinha.

Corto sua falação com um aceno, pois não quero entrar em uma conversa que faça com que eu me lembre de pormenores passados. Minha cabeça está apoiada na lateral da parede que limita o estofado, meus olhos presos à minha imagem refletida no vidro mais que ao cenário lá fora.

Em meu íntimo, quero aceitar de imediato sua troca — a trégua com Daniel não durará muito, espero ter respostas sobre o enigma em breve e os pesadelos estão me perseguindo, e tudo isso faz minha cabeça doer. Estar ocupada demais para falar com o rapaz, preparada para lidar com o novo baque que imagino vir com a tradução do segredo de Dakota e exausta para deitar e simplesmente dormir, pode salvar minha sanidade, que não estou considerando uma das melhores.

Desde quando eu faço acordos? É muito menos trabalhoso fazer o que quero sem pedir opinião, permissão ou o que quer que seja. De qualquer forma, eu quero fazer isso. Correr e lutar e sentir-me envolta pelo agridoce afago da adrenalina. Eu quero fazer mais que ficar parada num quarto, estagnada e solitária, com medo de sentir ou ver ou sentir-me voltando ao passado, inepta em realizar outra coisa que não respirar. E, ainda que isso signifique sair de minha zona de conforto, eu quero treinar com os futuros Cae.

Não quero?

— O que me ensinaria?

Elasorri, visto que sabe que me convenceu. Mesmo assim, tenho que pensar, decertoserá eu a pessoa que mais vai ganhar com esta história toda.



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