Sou aceita com tapinhas no ombro. Meus novos parceiros são receptivos, mas aceitam minha introspecção com nada mais que resignados sorrisos de boas-vindas. Não posso deixar de perguntar-me se eles fazem parte do outro lado da divisão das espécies, aquele submundo duvidoso apresentado a nós. Em cada olhar vejo a chance de estar encarando um lobo, uma bruxa ou qualquer ser que exista nessa nova categoria.
Contenho um recuar.
— Sou Sean e ajudo os novatos no treinamento. Ruby explicou o que tem que fazer? — Pergunta um dos garotos mais altos, parando à minha frente.
— Não.
Tento ignorar as grandes cicatrizes que cruzam metade de sua cabeça, quando ele vira de costas para mim. Tento não ofegar com a visão das longas e largas curvas avermelhadas ficam evidentes em sua cabeça careca pálida, cruzadas como dois ponteiros de relógio, que apontam para o Leste e o Oeste de sua cabeça.
— Então vou facilitar — fala ele, apontando um ponto ao longe.
Lá está o limite do descampado e da costa, que são bloqueados por uma pilha de rochedos com aparência perigosa que chegam há metros de distância do último grão de areia, do derradeiro fio da margem da grama, onde se inicia a parede da mansão. Paro de olhá-lo para fitar o local que indica com os dedos.
— Ali é onde devemos chegar e depois corremos de volta. A meta é atravessar todo este lado da praia até lá e voltar cinquenta vezes, em um dia.
Ergo uma sobrancelha.
— Isso quer dizer correr uns duzentos metros ida e volta. São cerca de dez quilômetros.
Ele sorri.
— Temos a tarde toda para isso. O jantar só começa às oito.
Entrecerro os olhos para ele, vendo nossos menos de dez colegas rirem. Não me sinto ofendida, porém. Estou cômoda com essas pessoas e não estou acostumada com esse efeito de estar bem entre gente. Por isso, sorrio para eles, ajusto os cadarços dos tênis ganhados, alongo-me por curtos cinco minutos e coloco-me em posição de corrida, vendo-os posicionar-se comigo.
Seria excitação pela atividade o arrepio que percorre meu corpo?
Bem, correr por mais de quatro horas seria um recorde interessante de se quebrar.
— Vamos correr.
O gosto salgado do Mar invade meu paladar junto com o cheiro que ofusca meu olfato para qualquer outro odor que não este. Minhas pernas flexionam-se, dobram-se, dão impulso e ajudam-me a pular os obstáculos que vejo à frente. Passo por cada uma das pedras ocultas na areia sem tropeçar nelas, salto os caranguejos que se escondem em pontos isolados, ultrapasso os buracos que não se revelam em meu percurso e deixo metade dos meus colegas para trás, comendo poeira literalmente, permitindo-me sentir o vento beijar minha pele e acalentar meus sentidos para que eu fique envolta em totalidade por esse toque, esse único toque de paz, de realização, de familiaridade que é correr — mesmo que eu esteja longe de minha capacidade máxima.
Livre. É como eu me sinto.
"Siga as ondas e a areia. Enquanto puder achar o Mar, poderá achar o caminho de casa".
É isso, sempre foi. O monstro aterrorizante, a imensidão azul que tem o poder de me matar é também o que tem o poder de me mostrar meu lar.
Sean corre comigo, sem hesitar em abandonar os mais lentos, assim como dois garotos e três garotas do grupo. Eles acompanham meu ritmo sem acelerar ou diminuir demais seus passos, sorrindo a cada vez que me olham. Eles gritam quando chegamos às pedras pela primeira vez e eu grito com eles. Gritamos quando cruzamos com os outros, que vêm nessa direção. E eles gritam ao chegar à linha de partida e eu grito quando voltamos pelo mesmo caminho porque não consigo evitar.
Minha boca seca e os olhos ardendo não podem me parar. Sinto-me flutuando na brisa refrescante que deriva do Mar, uma corrente de vento que me eleva e ergue e conduz para nosso destino uma e outra vez, trazendo consigo um broto de emoção que não sou capaz de identificar. O carinho que o Sol faz em minha pele descoberta dos braços assemelhando-se ao toque gentil das gotículas de água que pulam em meu rosto quando Sean corre na beira da praia, molhando-nos com seus pés que se estatelam de novo e de novo na espuma que chega a ele. Eu não me achego ao mar, mas não me importo com a brincadeira. Sigo-o sem conter meu impulso de ir mais e mais rápido, sem poder aprisionar o anseio de estar aqui.
Vida. Pura e simplesmente. É isso que sinto.
É o Mar e suas ondas que se quebram na encosta das rochas, mais à frente. É a saudade e a tristeza de ser incapaz de voltar no tempo. É adrenalina. É o alimento para meu corpo. E eu. Um ser igual a muitos outros, sem um propósito real em sua mediocridade, um ser com uma vida sem sentido, mas que não deixa de vivê-la.
No fim, é isso. Tão somente isso.
Somos a vida e eu. O resto é insignificante.
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Artefatos de Sangue
Paranormal"Eu nunca quis ser parte disso. Nunca quis fazer parte dessa guerra. Nunca quis ter que escolher um lado. Mas, por eles, e por mim, eu finalmente queria tentar". Embarque nessa aventura, afogue-se nessa história enigmática e envolva-se num mundo de...