STOP!

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_ Tem certeza de que precisa de uma criança? Ele é meu neto! Não pode ser outra?

Uma voz suave e angelical lhe dizia que não. Precisava de uma inocente, da pele imaculada, que precisaria provar lealdade. Desesperada, a mulher olhou, pela janela do sótão, em direção ao menino que brincava com um dos filtros dos sonhos, os quais fabricava à mão e vendia para ajudar a avó.

Seu coração temia por ele.

_ Por favor, me peça outra criança... não posso sacrificar quem mais amo...

"Το δεύτερο παιδί δεν έχει ακόμη γεννηθεί. Έχω πολύ άγχος"
To déftero paidí den échei akómi gennitheí. Écho polý ánchos

Apesar de lhe soar suave como veludo, o som do demônio fazia suas orelhas esquentarem sob o ambiente costumeiramente gélido durante a evocação; já estava habituada com esta sensação, mas não ao ver seus falecidos familiares, com seus corpos decompostos e escurecidos, olharem para sua alma com profundo ódio. Seu estômago se revirava com o cheiro pútrido dos gases e fluidos que escapavam a cada pequeno movimento que faziam, mas não conseguia vomitar, nem abrir a boca para falar; seus dentes estavam cerrados de modo a doer sua mandíbula. Por sorte, sabia que não precisava verbalizar o que sentia, afinal, estava falando com uma criatura que conhecia todos os seus profundos sentimentos e ambições.

"Qual seria a outra criança? Me diga qual, eu posso apressá-la!", mentalizou.

"Πρωτότοκος της Σάρλοτ Χιλς"
Protótokos tis Sárlot Chils

Sabia que seria complicado, mas não poderia sacrificar o único bem valioso que lhe restou, não poderia deixar que seu neto fosse um cordeiro indo diretamente para o abate e tendo sua alma consumida pela escuridão; jamais se perdoaria por isso, ainda que duvidasse, um dia, de seu próprio perdão pelo que faria a seguir.
O olhar de decepção de Violet persistia. Nunca foi a favor dos feitos de sua mãe, porém, lá estava ela, fazendo o mesmo para garantir mais alguns anos de vida e adiar uma morte sangrenta que lhe daria a eternidade nas mãos de um demônio.
O rei do inferno lhe fora apresentado, desde cedo, como um anjo que lhe protegeria por toda a vida.

Ledo engano.

Embora sentisse algo ruim vindo das pessoas que lhe cercavam e eram interligadas a ele, nunca conseguia protestar enquanto havia tempo. Em sua velhice, só conseguia implorar por mais daquilo que já não lhe restava muito.

Era tarde demais.

"φέρε με σε ένα χρόνο"
fére me se éna chróno

"Sim, senhor"

Seu olhar permanecia direcionado aos cadáveres enquanto mantinham-se em pé, enraivecidos. Pouco a pouco, eles andavam para fora do círculo de invocação e caíam como bonecas de pano, soltando ainda mais gases de odor repulsivo, enquanto, pela janela, se notava desaparecendo na luz do sol uma silhueta de aparência feminina, com uma coroa em seus longos cabelos esticados, montada num animal que se assemelhava a um camelo. Não era a primeira vez que Violet conseguia ver o formato da criatura a quem servia, nem que se sentia maravilhada com os traços delicados que ela parecia ter, o que seria a única qualidade vinda daquilo, quando não mais a ameaçava.

Os corpos permaneciam jogados no chão, mostrando que eram reais e que precisariam ser retirados antes do pôr do sol.
No caminho para o banheiro, enquanto descia sorrateiramente as escadas do sótão, Violet segurava o choro para não alertar sua criança, até o momento em que se trancou o cômodo e vomitou seu suco gástrico, com lágrimas nos olhos. O reflexo do estômago a impedia de respirar e sentiu alívio por um momento, ainda que sua garganta aparentasse estar em chamas, mas, graças a isso, conseguiu segurar os soluços de choro. Por fim, desesperadamente gargarejou a água da pia e olhou, por instinto, seu semblante acabado.
Não gostava de sua aparência atual. Sua vontade era cortar pedaço por pedaço de sua pele enrugada e costurar os restantes, tudo por medo do passar do tempo, embora soubesse que aquilo não iria servir de valia alguma quando se tem a previsão de uma morte violenta por um rei bem apresentado. Paimon esfregaria na sua cara o rosto esticado e impecável e riria de seu sofrimento à medida que seu corpo definhado se aproximasse mais da morte, afogando-se no próprio sangue.

Embora quisesse permanecer naquele banheiro para sempre, sabia que deveria afastar os demônios em sua mente e,  mais uma vez, fingir que nada estava acontecendo por um curto período de tempo.

_Samuel, venha cá.  - O menino, sentado no gramado verde, levantou-se com o filtro dos sonhos e correu em direção a Violet, cujo sorriso era forçado, tentando parecer forte na frente da criança.

_Oi, vó. Já viu esse? Tive uma ideia de fazer um com linhas pretas, o que acha? - Orgulhoso, mostrou a finalização de um dos seus trabalhos, mas logo abaixou as mãos quando sua avó mudou de assunto bruscamente, coisa que sempre fazia e o incomodava de forma incomum.

_Eu preciso executar alguns projetos agora, talvez nos faça ganhar um pouco mais de dinheiro e ajude nas vendas dos filtros. Posso fazer alguns barulhos e vai feder um pouco por causa do verniz, mas não se preocupe, tudo bem?

_Claro. - Sua alegria se dissipou a cada palavra que a mulher dizia. Já fazia algum tempo que ela não lhe dedicava sequer um pouco da atenção, sempre estava cansada ou ocupada demais e isso já estava dando nos nervos.

Sem falar mais nada, Violet pegou o machado que sempre pendurava entre dois pregos na varanda e subiu para o sótão.
O cheiro ainda a enojava de modo que precisou tirar sua blusa e amarrá-la cobrindo o nariz e a boca para continuar cortando membro por membro, de onde uma secreção pútrida descia e era absorvido pela madeira. Os grandes sacos pretos de lixo que guardavam velharias foram úteis no momento de armazenar seus parentes esquartejados e carregá-los, com muito esforço, para trás da casa, enterrando-os abaixo da árvore de maçãs verdes que crescia tão saudável quanto os frutos. Por fim, a senhora comeu um deles, suspirou de alívio e murmurou para o vento:

_Não deixarei que levem meu bem mais precioso, nem a mim, ainda. É uma promessa.

-

Cerca de dez da manhã, quase pontualmente, John se encontrava presente no necrotério mais uma vez. Bebeu dois goles de água, antes de atravessar o pequeno corredor e se deparar com o corpo nu e ensanguentado do médico diante a gaveta fechada de Jason Britch. O cheiro de urina velha também era notável. Simon havia feito um corte tão profundo em sua garganta a ponto de quase cair decapitado no piso, algo cientificamente impossível, assim como as palavras "THE RITUAL NEEDS TO STOP", escritas com seu próprio sangue.

_Puta que pariu! - Assombrado, o auxiliar largou sua mochila no chão e prontamente chamou pela emergência.

O relatório do Caso Britch foi encontrado junto ao sangue, com registros ilegíveis.

Continua...

The Ritual Of Bones - Volume IIOnde histórias criam vida. Descubra agora