Sangue frio...

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_O que é isso vovó? - A criança perguntou ao ver uma tigela com um líquido vermelho e quatro patas de algum animal espalhados numa cômoda junto a folhas de samambaia, incenso de olíbano e velas pretas recentemente apagadas. - São pés?

_Patas. São patas. - A velha respondeu simplista e ríspida, afastando a tigela da vista do menino. - Benjamin Samuel, já lhe disse para não entrar aqui sem ser convidado, onde estão seus modos? - Sua repreensão fez com que a criança se encolhesse.

_Desculpa, é que não tem nada pra fazer.

Amabe respirou profundamente, tentando controlar pelo menos um pouco de sua ansiedade, antes de tirá-lo dali para a cozinha.

_Venha, vamos fazer algo para você comer. Quer uma torta de frango?

_Torta de frangoooo! - Os pulos e o grito animado de Ben, assim como seu sorriso reluzente com um dente de leite faltando e os olhos brilhantes, alegravam pelo menos um pouco o ambiente obscuro da casa bolorenta e mal iluminada que atraía moscas. Quando Amabe olhou para trás, a criatura de três cabeças já se encontrava presente, se servindo da oferenda no altar, que consistia em patas de um coelho defeituoso e o sangue do animal, misturado com o próprio.

Eis o motivo de tantas moscas.

...

Já estava para dar onze horas da noite, quando Kimberly, em sua sala de estar, viu Charlie correr para o banheiro e vomitar não muito tempo depois. A princípio, pensou ser o jantar que ela não havia digerido bem, mas aquilo não resultaria em um choro baixo e murmúrios desesperados.

_Meus pais vão me matar, eles vão me matar...

Depois de sofrer tanto com seu trauma e enfrentá-lo, não queria ter que resolver mais um problema, que não era seu; porém, este era seu trabalho, certo?
Ainda temendo que fosse Jason a atormentar sua irmã mais nova, respirou fundo, levantou-se da poltrona e caminhou até a porta do banheiro.

_Charlie? - Os suspiros e gemidos assustados da adolescente pareceram ser uma resposta imediata ao seu chamado, e como Kim ouviu seus murmúrios, sabia exatamente o que dizer. - Minha mãe está dormindo; está tudo bem, pode desabafar comigo.

Ela pareceu se acalmar, mas ainda demorou alguns minutos para girar a maçaneta e revelar seu rosto inchado e molhado pelas lágrimas. O corpo ainda tenso devido aos soluços foi abraçado pela mulher preocupada com sua condição e levado à sala de estar, onde a televisão permanecia ligada para abafar as vozes de ambas.

_O que aconteceu? - A delegada não conseguiu conter seu olhar assustado, tanto quanto o de Charlotte.

_Lembra, na mesa de jantar, quando eu disse que Jared agia estranho comigo ultimamente, me evitando e agindo friamente comigo?

"Ah, era isso", pensou. Seu semblante aliviado era aparente, apesar da notícia que estava por vir.

_Sim.

_Eu não disse o motivo para não alarmar minha mãe, mas... fazia algum tempo que estava enjoada e meio fraca, mesmo que não parecesse para vocês. Tentei esconder o máximo possível, mas uma hora não vai dar mais... - As lágrimas começavam a rolar novamente dos olhos vermelhos da menina, que respirou fundo antes de continuar, tentando disfarçar sua voz embargada. - Comprei um teste de farmácia e deu positivo para gravidez. O que eu faço, Kim?

A mais velha pegou em sua mão, lembrando de como confrontou Jason - ou o que quer que fosse aquilo - horas atrás e do quão determinada ficou.

_Você enfrenta de cabeça erguida; eu cuido do resto. - Kim percebeu uma faísca de esperança surgir em sua irmã. - Agora vai dormir, você precisa descansar... Nós precisamos.

_Posso dormir com você essa noite? - Perguntou enquanto coçava um dos olhos.

A mulher de cabelo desgrenhado respondeu apenas com um aceno de cabeça quase no mesmo momento em que se levantou para desligar a TV e caminhar em direção a seu quarto. Ao contrário de Charlie, que adormeceu rapidamente, seus pensamentos não lhe deixavam descansar: a decisão de voltar à corporação a partir da próxima consulta com seu psiquiatra, a investigação de um caso tão sombrio e agora a gravidez de Charlie... mal sabia por onde começar, o que fazer no dia seguinte.

Antes de se forçar a dormir, abriu seu notebook e desabafou em mensagem com sua psicóloga; ela certamente visualizaria pela manhã.

Aquela foi a primeira noite que não havia sonhado com Jason; na verdade, sonhou que estava correndo em um gramado interminável em volta de uma casa isolada, enquanto passavam flashes em sua visão, mostrando diferentes modelos de filtros dos sonhos. Ao longe, conseguia ver, próximo a um camelo bem adornado, um homem de traços finos, vestindo somente uma calça larga e uma criança em seus braços, brincando com os longos cabelos negros do rapaz.
Apesar de Kimberly acenar, alegre, somente o bebê a respondia com um sorriso; quem o segurava apenas a olhou fixamente por um período que mais pareceu uma eternidade antes de entrar na casa atrás de si.
Um piscar de olhos foi o suficiente para que ela se encontrasse de pé, com uma faca na mão esquerda e a mesma criança chorando em seu braço direito, diante de um corpo desfigurado demais para ser reconhecido. Embora fosse de seu feitio reagir revoltada, confusa ou até mesmo triste, principalmente no estado em que se encontrava, Kim não o fez; na verdade, sentiu vontade de gargalhar, um profundo êxtase provindo do desconhecido, mais regozijante que correr em um campo interminável sob o calor do sol depois de repetidos pesadelos.
Confortada pelo cheiro metálico da massa de sangue e pele espalhados junto ao bolor da madeira, deixou a faca de lado e se jogou sentada com o bebê escandaloso no colo, observando o camelo partir com o homem debaixo do céu alaranjado.

Quando tudo escureceu, percebeu que não havia mais o que sonhar e precisava levantar da cama, não mais abalada como nos dias anteriores. Apesar do problema que precisaria lidar, seu semblante era perceptivelmente sereno para Charlie, que, mexendo no telefone, volta e meia olhava para sua irmã e sorria antes de voltar sua atenção para a tela do dispositivo.

_Parece ter dormido bem. - Disse, enquanto digitava algo.

_Até que não foi tão ruim, pelo menos tenho novidades para escrever no diário.

_Conta. - Finalmente, a mais nova bloqueou o celular e voltou seu olhar totalmente para Kim.

_Sonhei que estava correndo em um campo extenso. Estava alegre por ter me livrado de todos aqueles pesadelos, sabe? Aí eu pisquei e... - Houve uma pausa para pensar se realmente precisava contar aquilo, quando Charlotte já estava estressada com a vinda de uma criança. Não parecia o certo a se fazer, embora houvesse sentido tamanha felicidade com algo tão macabro.

_E? - A menina franziu a testa e gesticulou com as mãos, ansiosa.

_Lembro de ter sonhado com mais alguma coisa, mas esqueci o que aconteceu.

Charlie deu de ombros e retomou o que fazia antes de sua irmã acordar. Kim, por sua vez, levantou-se, abriu a gaveta ao seu lado e pegou seu fiel caderno de anotações íntimas e repetidas demais para mostrar a qualquer um que não fosse sua psicóloga.

"66º dia

Finalmente sonhei com algo diferente do Jason me perseguindo, mas ao mesmo tempo que sinto me livrar dele, também me dá insegurança de que um dia eu me torne como ele... pelo menos, depois do êxtase que tive com o sonho de hoje, foi o que me pareceu. Espero que seja somente algo do meu subconsciente.

Espero"

Continua...

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⏰ Última atualização: Dec 14, 2023 ⏰

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The Ritual Of Bones - Volume IIOnde histórias criam vida. Descubra agora