Capítulo 1: o começo

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Sam poderia facilmente ser considerado o pior chefe do mundo e eu não ficaria surpresa. Ele consegue ser mais mala do que o Michael Scott e isso é uma conquista e tanto. 

É a terceira vez na semana que preciso ficar três horas a mais só para fechar a droga da livraria. Eu sinceramente nem sei como esse lugar ainda está aberto, com toda a onda de eBooks agora e a resistência do Sam a abrir um site para a loja, é um milagre que a livraria ainda esteja aberta. 

Faço uma lista mental de tudo o que vou fazer quando chegar em casa: 

1 - Acender uma vela;
2 - Levar Marrom, o gato rabugento, para a vizinha e pedir para ela cuidar dele por um tempo;
3 - Tomar um banho relaxante com os sais que comprei semana passada;
4 - Comer a macarronada que fiz ontem;
5 - Tomar uma grande taça de vinho;
6 - Engolir todos os remédios do vidrinho laranja. 

Meu estômago embrulha quando penso nisso, porque não sinto mais nada além do ocasional frio na barriga. Não sinto vontade de sorrir, de chorar, de respirar. 

Passo os dedos no balcão amarelado como quem tira pó, perdida e com o coração acelerado. Preciso contar quantas vezes respiro para ter certeza de que ainda estou aqui, presa com livros novos e velhos, estantes cheias de poeira, uma luz amarela fraca que só é capaz de iluminar a vitrine. 

Me pergunto se vou sentir saudades desse lugar, depois de... 

O Dom amava essa livraria, talvez mais do que amava a si mesmo. Nosso primeiro encontro, nosso primeiro beijo, nossa primeira perda, nosso primeiro choro, nossa primeira briga, nosso primeiro pedido de desculpas... Esse lugar é lotado dos nossos "primeiros". E é sufocante pensar nisso. 

É sufocante que a única pessoa que eu tinha se foi e agora não sobrou nada nem ninguém. Penso no meu velório e que provavelmente estaria composto pelo meu gato, a vizinha de 79 anos que às vezes leva alguns muffins de caramelo para mim e, quem sabe, meu pai. Isso se ele ainda se lembra de mim. 

É cansativo para caramba viver. 

Minha terapeuta costumava dizer que o luto é difícil, mas a verdade é que é insuportável. Ainda mais quando a pessoa que você perdeu era a única em sua vida. Não consigo mais lidar com isso. 

Confiro as notas de cinquenta mais uma vez e fecho o caixa, mas antes, me lembro de deixar um bilhete para o Sam. 

A sra. Yun vem buscar amanhã o livro de colorir amarelo para a sobrinha. Ela já pagou na semana passada. 

Patrick encomendeu O Órfão de Hitler e o livro provavelmente chega semana que vem. Lembre-se de cobrar dele antes de dar o livro. 

Me desculpe por tudo. Você dá conta. 

P.S: crie um site para a loja, por favor. Por mim. Encare como um último pedido. 

Até,
Clair. 

Sam pode ser um babaca, mas esse lugar é seu patrimônio e não quero deixá-lo a devira. Garanti que tudo estivesse no lugar antes de eu partir. 

Pego o molho de chaves debaixo da bancada e desço do banquinho de madeira, pegando minha bolsa e indo embora. Pronta e ainda muito insegura. 

Mas é quinta-feira à noite e não tem mais ninguém a essas horas, então decido olhar alguns livros uma última vez. Alguns deles já li e outros não. 

Na vitrine, a contra gosto do Sam, temos vários livros eróticos expostos. Não posso fazer nada se são os que mais vendem no momento, mas tem um ou outro de negócios e autoajuda ali também. 

Penso que se eu tivesse lido algum livro sobre morte ou luto na época teria lidado melhor, mas nada teria me ajudado, eu estava em um completo fundo do poço. Ainda estou, na verdade. 

Passo as mãos nas capas duras, tamborilando as unhas na capa para criar aquele eco gostoso. Geralmente prefiro livros sem capa dura, mas gosto de tocar neles.

Vou até as grandes estantes na lateral da loja, meu lugar favorito. Gosto de observar os clientes que ficam horas perdidos ali, com tantas opções que seus olhos não conseguem acompanhar. Então fazem o famoso ritual: pegam um livro, leem o título, leem a sinopse, leem as primeiras páginas e os devolvem para a prateleira. E depois fazem isso tudo de novo. Até que um lhes chama a atenção e é o escolhido. 

Tem um homem alto com cabelo ralo que sempre pega vários livros e depois de alguns dias, volta para dizer de quais gostou. Acho que talvez ele é tão solitário quanto eu, mas gosto de ouvir suas impressões sobre o que leu, no geral são muito divertidas e profundas. 

E ali, em meio a sessão 3: clássicos da literatura universal, olho para um exemplar colorido e capa dura de Orgulho e Preconceito. Recebemos semana passada essa remessa e já vendemos uns nove exemplares. A edição nova está linda, com adornos dourados ao redor do título e o casal na capa, mas com uma ilustração meio desfocada. Combina perfeitamente com o livro. 

Li essa história quando estava no ensino médio e tinha uns 15 anos. Confesso que era perdidamente apaixonada pelo Darcy e me imaginava montando em um cavalo com ele, depois de alguns anos eu só me pegava imaginando montada em outra coisa, mas não vem ao caso agora. 

Acontece que Dom e eu discutíamos muito sobre esse livro, até ao ponto de irmos dormir em lados opostos da cama porque ele dizia que Jane era mimada e eu a defendi que ela apenas seguia os costumes da época. No fim, a gente relia todo o livro para convencer um ao outro disso. 

Esse pensamento enche meus olhos d'água. Sinto falta até das nossas discussões bobas por causa de livros, de como ele agitava as mãos no ar quando eu discordava da sua opinião e detalhava (em tópicos) motivos pelos quais Jane era, nas palavras dele, uma chata de galocha. 

Eu daria tudo para discutirmos mais uma vez sobre a personalidade da personagem. Em um impulso, tiro o livro do meio dos outros e o abro, passando os dedos delicadamente em cada página, lendo com atenção as primeiras frases. 

É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor deuma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa. 

Por pouco que os sentimentos ou as opiniões de tal homem sejam conhecidos, aose fixar numa nova localidade, essa verdade se encontra de tal modo impressanos espíritos das famílias vizinhas, que o rapaz é desde logo considerado apropriedade legítima de uma das suas filhas. 

Estou prestes a fechar o livro com a garganta entalada de choro e sentimentos conflituosos quando o ar parece fugir dos meus pulmões e não sinto mais o livro nas minhas mãos, tampouco o chão aos meus pés. Sinto como se estivesse flutuando e minha cabeça gira descontroladamente. Fecho meus olhos com força quando um clarão verde limão estoura bem na minha frente. De repente, estou flutuando em meio ao nada e quando estou prestes a gritar por ajuda, tudo se estabiliza de novo. 

Sem coragem de abrir os olhos, sinto estar sentada em algo macio e tateio ao meu lado esperando sentir a madeira fria cheia de livros, mas quando pouso a palma direita no chão, tudo o que sinto é algo gelado e então identifico o que é: grama úmida.

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⏰ Última atualização: May 08, 2022 ⏰

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