A Lua

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O caminho para casa costumava não ser tão legal assim, apesar de ser um momento muito aguardado. Ônibus lotado, gente apavorada com a constante ameaça de um golpe, um sequestro geral ou de uma invasão. Tudo estava um caos, daqueles que a gente nunca imagina que pode melhorar. Minha mãe dizia que tudo ia passar, que era só um ano ruim, mas o governo acabara de decretar estado de sítio, ninguém queria assumir a responsabilidade pelo país e as ruas estavam lotadas de gente gritando por seus direitos, o que parecia ser em vão, porque praticamente todas as assembleias do país já estavam vazias. Os do patamar mais alto (aqueles que podiam pagar por um trem super-rápido ou que tinham um helicóptero ou jatinho esperando por eles) já se preparavam para deixar o país. Minha cidade é pequena, nunca teve muitas coisas para distrair os jovens e todo mundo costumava ficar na rua até bem tarde assustando quem voltava para casa do trabalho ou pulando muros para tentar pegar um punhado de comida (a comida também estava sumindo, assim como os policiais e os prefeitos, governadores e todo o pessoal que cuidava das pessoas, ou que deveria cuidar). Naquele dia em específico, eu não estava me sentindo tão bem, minha escola tinha parado, assim como a maioria das escolas espalhadas pelo país, e eu voltei para casa sem saber como seriam os próximos dias. Uma das minhas colegas de turma, Grace, disse que estava ali só para passar o tempo, que seus pais já haviam preparado tudo para que eles fugissem no dia seguinte. Grace não era lá uma pessoa ruim, era até legalzinha, me dava os restos do lanche dela as vezes, me perguntava como era viver do outro lado da cidade, onde as pessoas dormiam nas ruas e fechavam a passagem durante a noite, como era a sensação de estar rodeado de possibilidades de confusão. Ela também costumava me perguntar se alguém havia me escolhido para ir embora nos trens que levariam os empregados e gente mais pobre pra trabalhar no novo lugar como encanador ou algo do tipo, mas eu sempre dizia que só quem era escolhido mesmo era quem eles achavam que não ia dar problema, e meu pai foi morto durante uma manifestação, ele as vezes falava na tv sobre como aquele lado da cidade tinha sido abandonado e como as pessoas viviam largadas à própria sorte (azar), então de gente assim eles queriam distância. Eu nunca seria escolhido.
Naquele dia eu tinha tentado falar com minha mãe, mas me lembrei que há uma semana trocáramos o telefone de casa em alguns pacotes de fórmula, já não restavam tantas coisas assim para trocar. Minha mãe dizia que se eu continuasse na escola eles deixariam a gente cruzar sem ter que pagar o ônibus, mas agora não sei como vai ser.

Talvez a gente possa tentar trocar a casa com alguns daqueles caras que conseguem comida, mas aí teríamos que ficar nas barracas, eu sempre tive medo de acabar nas barracas porque o pessoal de lá me olhava de um jeito meio esquisito e parecia que a qualquer momento iam me levar e tentar me trocar por uma passagem de trem, mas geralmente eles só deixavam fazer isso quem tivesse os registros da criança. Eles pareciam gostar quando recebiam crianças, o pessoal das passagens de trem - acho que eles dividiam entre si para gravar vídeos e mandar nelas, coisas tipo limpar o chão ou fingir que eram uma marionete, sei lá, as meninas da escola uma vez disseram que se você fosse menina podia até valer duas passagens de trem, eles gostavam das meninas.
Quando eu finalmente cheguei perto da minha parada, quase não consegui sair. Tinha muita gente gritando umas coisas estranhas do lado de fora, batendo nas janelas – aquilo costumava acontecer, eles achavam que quem ainda podia pagar pelos ônibus podia ter comida ou algo assim – mas quando eu desci, vi mais gente do que o normal na rua. Eram uns estrangeiros da fronteira, eles estavam fechando as ruas para tentar levar os carros velhos que ainda circulavam para trocar em comida ou passagem de trem. Todas as quitandas estavam fechadas, as luzes estavam se apagando e umas pessoas estavam tentando ligar na emergência, mas nem adiantava mais tentar, àquela atura eles já não atendiam mais aos chamados do distrito. As pessoas estavam correndo como se algo muito assustador estivesse acontecendo. Eu tentei passar para o outro lado da rua, mas tinha gente segurando placas e faixas amarelas, o tumulto não me deixava ver se eu já estava perto da esquina. Um homem me disse corre logo garoto, eles estão vindo varrer a gente, fala pra sua mãe te levar na troca. Minha mãe dizia que não ia me trocar, que eu não era mercadoria. Eu sempre perguntava pra ela o que ia acontecer se ela não me levasse lá, se íamos morrer de fome e ela respondia com lágrimas nos olhos dizendo que ia me proteger. A barraca da esquina tinha uma tv e estavam dizendo que dessa vez os trens estavam com as vagas todas ocupadas e que depois do último trem, eles derrubariam a estrada transatlântica. Os trens que tinham saído naquela manhã tinham levado os últimos lotes de fórmula e ninguém tinha mais o que comer. Alguns vizinhos estavam colocando os últimos móveis na rua para tentar trocar por algum resto de fórmula ou comida, mas a comida não era tão diferente da fórmula, eram umas bolinhas meladas com gosto de ferrugem. Na escola diziam que a fórmula era mais saudável pois tinha restos de animais triturados e os animais eram uma boa fonte de proteínas, a comida, além de ser mais cara, vinha numa mistura do que eles chamavam de legume batido com soja, mas era mais gostosa do que a fórmula. Não importa, a gente já não come nada faz alguns dias.

Quando eu cheguei na frente da nossa casa, minha mãe estava me esperando e segurando uma cadeira de plástico, que a gente usava para ver a lua perto do posto final, ficava no fim da nossa estrada, mas não dava pra passar pro outro lado, eles tinham construído um muro bem alto, só dava pra passar de trem. Algumas pessoas tinham tentado subir o muro escalando os trilhos, mas os trens passavam antes que eles conseguissem chegar do outro lado. Era legal ir ver a lua dali, mas o cheiro ficava cada dia mais forte. Minha mãe me dizia para não olhar para baixo, mas eu já espiara algumas vezes e só o que tinha eram alguns cadáveres caídos, eu não tinha mais medo da putrefação, a gente via muitos deles jogados na rua de vez em quando, mas ainda assim não gostava do cheiro.
Aquela noite estava agradável, o termômetro do muro estava marcando 53°C mas estava ventando um pouco. Desde que anunciaram na tv que não ia mais ser possível ficar debaixo do nosso céu sem um capuz de titânio, a gente nunca mais tinha visto o vento bater nos restos de bandeiras penduradas ao longo da estrada. Era o pessoal que vinha da fronteira que colocava lá. Mas não adiantava, só dava mais confusão e as bandeiras acabavam ficando sem dono. Uma vez perguntei pra minha mãe porque eles sumiam depois das brigas, ela disse que era porque eles não sabiam dialogar, só se matar feito uns animais sanguinários. A lua estava bonita, eu gostava de ver a lua. As vezes, quando a gente parava lá pra ver a lua, um dos trens passava e a gente via as janelas de vidro cheias de palavras dizendo rumo ao novo lugar e lá no fundo dava pra ver algumas pessoas andando e conversando. Os vagões do fim sempre pareciam ser os mais estranhos, porque as pessoas estavam dançando ou lendo ou olhando para o lado de fora rindo. Minha mãe dizia que fazia tempo que não se tinha motivo para rir.


Anna Carolina Cunha

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⏰ Última atualização: May 13, 2022 ⏰

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