"A gente está sempre se encontrando, doutor. Até parece que é obra do destino."
Eu despertei do transe com o susto da sua inesperada aparição. Virei o corpo para longe do parapeito a fim de fitá-la.
"Obra da Morte, você quer dizer."
Ela correu os olhos pelo terraço da Terrare até prendê-los nos meus de novo.
"Pode ser. Combina com o local."
E começou a caminhar em minha direção.
"O que faz aqui?"
Ela inclinou a cabeça para o lado me analisando.
"Bom, eu trabalhava aqui. Já o doutor não poderia estar mais longe do seu habitat natural, como veio parar aqui?"
Eu me enfureci com a pergunta. Será possível que depois do dia infernal que tive ainda estava sendo cobrado por explicações?
"E isso lhe diz respeito por quê mesmo?"
Ela se inflamou também. Avançou em minha direção até nossos torsos se encontrarem, apontando o dedo na minha cara.
"Olha aqui, doutor, quem te deu o direito de sair tratando como lixo qualquer um que vê pela frente? Acha que só você teve um dia difícil? Desculpe, mas o resto da população também não passa o tempo todo num clipe colorido de flashmob com a pessoa dos sonhos!"
O tom de voz foi aumentando gradativamente e ao terminar ela estava arfando de tanto gritar. Um rubor tomava conta do seu torso, pescoço e rosto e senti meus olhos querendo seguir aquela linha ao avesso mas me contive. Pigarreei sem jeito.
"Clipe colorido... você também viu?"
"A Paula com o Neném? Eu e o Brasil inteiro. Só dá isso nos canais de comunicação."
Enfim falei o que tanto me incomodava.
"Eles parecem tão apaixonados."
Ela suspirou e se recostou no parapeito.
"Sim..."
Mirei o seu perfil, ela era tão linda e tão cheia de vida. Senti o peso de minha idade em meus ossos.
"A Morte não separaria um casal tão feliz."
"Em Romeu & Julieta, Ela levava os dois. Infelizmente, no nosso caso Ela já se decidiu por apenas um."
"E, no final, sobraremos só nós dois para Ela escolher."
"É aqui que começamos a comparar nossas desgraças?"
Eu gargalhei com gosto como nunca mais pensei fazer.
"Eu começo ou você?"
Ela me encarou com aqueles olhos escuros que me perfuravam toda vez. Os olhos da garota eram mais escuros que o estado da minha alma naquele momento.
"O que o doutor veio realmente fazer aqui?"
"Desafiar minha sorte, escolher meu destino. Aqui pareceu uma boa altura para fazer isso quando passei pelo prédio."
O silêncio se estendeu com minha confissão. Ela passou um tempo encarando os próprios sapatos.
"Por que só eles podem ser um casal apaixonado?"
"Flávia..."
"Eu vi o que você fez com a sua aliança. Atirou-a daqui e não fez num rompante de raiva. O doutor estava bem lúcido."
Cada palavra era um passo até mim que eu tentava fugir recuando.
"Ela não quer mais nada comigo, nem mesmo com o Neném apaixonado por outra."
Minhas costas bateram no cimento duro.
"Mas eu quero."
Ela me prendeu contra a parede.
"Sempre quis."
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Try Me - Flagui
Fanfic"A gente está sempre se encontrando, doutor. Até parece que é obra do destino."