Capítulo Vinte e Sete

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Sonhei com bolhas e gritos. Parecia estranho que essas coisas ficassem juntas e serem assustadoras. No sonho, cada vez que eu andava — e não conseguia não andar — eu via bolhas no ar e uma a uma, elas foram estourando. Foram sopradas por gritos que ainda estavam aprisionados. Agora, acordado, não consigo lembrar dos detalhes. Só consigo registrar duas coisas no momento. A primeira coisa é que estou usando uma camisa que não é a minha. A segunda coisa é que ainda não amanheceu.

Terceira e última coisa registrada neste segundo: Arthur.

— O que está fazendo? — Falo e espanto o sono o mais rápido que posso.

— Acorde logo. Vem.

Pus os pés no chão e de súbito, parei. Busquei meus chinelos no escuro e depois, quando Arthur acendeu a luz, perguntei porque eu estava usando uma camisa dele.

— Você pegou antes de dormir. Eu a deixei em cima da cadeira. Acho que você pensou que era sua. Mas você fica legal com ela. Vem — e de novo, ele pegou minha mão e saímos do quarto.

Mesmo não tendo janelas o corredor é frio. Acho que mesmo se houvesse janelas seria frio. Não era o frio que estou acostumado, o do começo da manhã ou do cair da noite. É um frio que nunca acaba e parece até queimar os pulmões quando se respira muito forte.

— Onde estão as Águias?

— Não se preocupe com eles. Eu disse a Andréas que iriamos precisar sair do quarto hoje à noite.

Quando chegamos ao refeitório eu pedi a ele que esperasse. O vento bagunçava seus cabelos. Arthur não parecia notar.

— Você foi falar com Andréas sobre... Nós?

Seus ombros encolheram um pouco e ele disse, com a voz envergonhada:

— Precisei. Ele não ia me liberar se eu não contasse que era para um bom motivo.

Um bom motivo para Hudson Andréas que agora sabe que eu pego meu colega de quarto.

Antes que eu possa dizer mais alguma coisa Arthur me guia pelo jardim e não paramos até chegar perto da árvore em forma de lua. Nos sentamos na grama e ouvi os grilos em algum lugar, em alguma moita. Meu corpo todo estava em alerta desde que passamos pelo refeitório e vislumbres do meu sonho apareceram na minha mente.

— O que estamos fazendo aqui?

— Hum... Você preferia que eu fizesse isso no quarto?

— Fazer o quê?

Ele me mostrou um papel.

Pequeno e azul. Outro post-it que ele tinha.

— Lê.

Quis beijar você desde o instante em que tive mas eu achei isso uma loucura.

Em seguida ele me deu outro.

Quando finalmente beijei você, constatei que queria me afundar nessa loucura.

Depois outro.

Assim como quero me afundar nos seus olhos azuis. Eu deixo sua boca me levar para navegar no seu gosto no meu.

Meu corpo inteiro esquentou ao mesmo tempo em que arrepiei. O frio... Não. Foram as palavras dele que fizeram isso comigo. Lê-las me deixava zonzo, confuso, mas bem, sempre bem.

Olhei para Arthur e, com nenhum som para nos atrapalhar —nem mesmo latidos ou passos — eu não deixei que meus olhos desgrudassem dos dele por um logo tempo. As palavras reprisando na mente. Por um instante me perguntei se era isso que eu queria.

Ser feliz? Sim, claro que sim, porra!

Deixei os post-its de lado e me aproximei de Arthur. Esqueci qualquer nome e medo que haviam em minha cabeça e o beijei. Foi um beijo calmo e eu não conseguia controlar minha vontade de tocar o rosto dele, eu quase não conseguia segurar a vontade de sentar no colo dele. o silêncio, o frio do exterior em contraste com o calor do meu interior e as mãos dele, o beijo lento e nossas línguas que nunca param. Os gemidos acompanhando. Era isso que as pessoas queriam dizer quando dizem que tudo está em sintonia. As coisas funcionam e o mundo de repente não parece ser um lugar tão feio.

O beijo de Arthur me deixou zonzo, me deixou sedento e mais tantas coisas que é difícil pensar em uma só, em um só segundo, quando tudo se mistura. Eu queria deixar ele nos meus braços por um longo, longo tempo.

Nos beijamos mais antes que ele me estendesse mais um papel. Dessa vez era rosa. Precisei colocar onde a luz de um dos postes iluminava. O meu coração, não achei que fosse possível, acelerou mais.

Você é o mais especial no meu espaço e eu não quero deixar que você vá para longe.

Aceita namorar comigo?

E, no canto inferior do papelzinho, um coração sorridente com mais corações ao redor.

Fofo.

Fofo e muito, muito incrível.

— Está com a caneta aí?

Ele a pega e me dá.

Escrevo no canto inferior esquerdo um grande sim.

— Temos que voltar.

— Já? — questionei e olhei para a árvore em forma de lua. Estava podada perfeitamente.

Eu queria gravar ela na minha cabeça e deixar que esse momento fixasse. No domingo, quando estiver quase morrendo de tédio estando com meu pai, vou me lembrar de agora e vou me sentir melhor. Então preciso dos detalhes, preciso registrar as sensações e a única coisa que sinto nesse momento: felicidade.

— Sim. Infelizmente.

Nos levantamos da grama. Limpei meu calção e andei em direção ao refeitório. Parei quando senti a mão de Arthur tocando na minha e entrelaçando nossos dedos. De mãos dadas — e comigo me sentindo outra pessoa — acabamos entrando na escola. É estranho também pensar que vamos para o nosso quarto, pensar que agora somos um nós. Isso me acompanhou pelo trajeto inteiro, em silêncio, eu não tinha como desgrudar desse pensamento que, pouco a pouco, se tornou assustador.

Havia a minha cama e a dele, ainda uma de frente a outra, nada mudou. Mas mudou. Não sei como reagir a mudanças. Não soube como reagir a elas desde sempre.

— Boa noite — ele m beijou. Seu beijo ainda tinha gosto de menta da escovação.

O beijei de volta e me deitei.

Mas meu corpo não se entregou ao sono como eu queria. Minha mente sequer tentou superar e ir dormir, porque comecei a me perguntar como as coisas ficariam. Eu não tinha como adivinhar — e esse era o maior dos problemas. Não tenho como adivinhar.

Entrelinhas (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora